05/01/2015 às 08h25min - Atualizada em 05/01/2015 às 08h25min

O MURO DAS MINHAS RECORDAÇÕES

Passei por ela no final do ano que se foi. Era um final de dia calorento. Temperatura de muitos graus na escala. Talvez até um pouco acima daquela que fazia queimar nos paralelepípedos quentes os pés descalços dos atletas das peladas de antigamente.

Ela estava calada como nunca esteve nos tempos da infância e juventude. Estava calada e, em respeitoso silêncio a cruzei de ponta a ponta, a sonhar com o passado.

Desconhecido dos poucos olhares cruzados na caminhada, segui por ela à moda de um saudoso a recordar detalhes do antigo ninho.

Vi um homem debruçado sobre o para-lamas de um veículo, talvez a procurar um defeito perdido entre aquelas peças sujas de graxa e a lataria limpa. No imaginário, vi na cena uma representação de improvável foto antiga do Neném André a consertar o seu velho ônibus que dormia naquela rua. Ou, a do Zé Vermelho, pai dos parceiros Erimá e Elifas, a regular o motor do carro de algum freguês. Ou, quem sabe, o retrato de algum dos caminhoneiros que ali residiam a ajustar o seu caminhão para mais uma viagem.

Vi o colibri parado na flor do jardim da Dona Tita. E o Colibri real, construído e mantido pela família Benati na casa onde viveu a costureira Deolinda. Casa depois habitada pelos antepassados da família mantenedora do Centro Cultural.

Olhei uma senhora na janela doutra casa e não nos reconhecemos. Eu, pela distância do último encontro com a rua. Ela, com certeza, porque não sou mais o menino que lhe entregava leite ou verdura na porta. Senti vontade de aproximar e me identificar, mas preferi não importuná-la com recordações que poderiam desagradá-la. A idade ensina que nem sempre é bom cobrar do idoso lembranças que ele “deletou” por razões que só a ele interessa.

Tive vontade de ir ao fundo da Vila Araújo para conferir a copa das goiabeiras do nosso antigo quintal. Ver se ainda guardam aquelas goiabas, brancas e vermelhas, de sabor que nunca mais encontrei no mercado. Mas fui desaconselhado pela prudência que me defende de eventuais decepções.

Com o olhar, perguntei às colunas do muro da casa dos Ruback, onde estariam os meninos e meninas da antiga rua que passava por entre aquelas casas da Benedito Valadares? Por onde andarão os que brincavam de pique-pega, bandidos e mocinho, finco, futebol, queimada, pipa, peteca, bafo e jogo de botão? Por quais estradas e retiros vagueia o caminhão de leite do Totônio Lupatini? Que fim levaram a Casa Araújo e a máquina de arroz do Sr. Aurélio Pimentel? O quê foi feito dos inofensivos Elias, Bom Cabrito e Jovelino Pecado, dos quais a criançada corria mais para se divertir do que em razão de algum medo? Mas as colunas não falam. No caso, apenas sustentam o muro das minhas recordações.

Ouvi o som de um filme do Backyardigans e tive a certeza de que ali ainda habitam crianças. Senti vontade de bater à porta daquela casa e ordenar que saíssem para correr, saltar, brincar com outras crianças e construírem juntas as suas histórias. Mas desisti. Elas me diriam que não há mais tempo. Depois da TV tem o joguinho no celular. E depois dele, mais TV. E o tempo se vai.

O tempo se foi. E veio este novo tempo que no mundo atua, onde menino na calçada é tido por “menino de rua”. Um novo conceito que me fez despertar com alguma dor no meu peito. Deixei calado a rua da minha terra. Alinhei o cabelo no salão do Antonio Guerra. Tomei um picolé na padaria Marino para voltar à lida e, segui em frente, acordado, para continuar a vida.

José Luiz (Luja) Machado Rodrigues é acadêmico da ALLA – 01.01.15

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