04/03/2015 às 16h10min - Atualizada em 04/03/2015 às 16h10min

Das janelas

“O trabalhador converte-se numa mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadorias produz. A desvalorização do mundo humano cresce na razão direta da valorização do mundo das coisas.”. Uma grande mente concluiu isso há mais de 150 anos.

Mas sobre as janelas, a janela do ônibus me parece a que oferece a visão mais panorâmica de todas. Sentado ali, com a cabeça batendo no vidro − no balanço oferecido pelas ruas esburacadas feito queijo ou remendadas mais que Emília,  no meio daquela variedade de cheiros e assuntos − costumo viajar para muito longe e ver coisas que eu não viria em qualquer outro lugar. 

Aquele tempo entre o ponto de partida e o destino oferece a oportunidade de surfar em muitas ondas. Ali eu  me arrependo, me encorajo, faço planos, os desfaço, insisto, desisto, amo, odeio, gosto mais ou menos, xingo, idolatro, sou ateu, agnóstico, budista, espírita, não sou nada, escuto a conversa alheia, faço a revolução, me entrego ao sistema, me empenho no primeiro milhão, mudo de cidade, de país, rio ou choro disso tudo e posso, ou não, chegar a alguma conclusão. Baita liberdade aquela janela me dá em menos de uma hora.

Olhando os demais privilegiados, sentados em outras janelas, imagino, pelo “olhar perdido” e “pregado no nada”,  que alguns também estão no “mundo da Lua”. Será que do lado escuro? Vai saber...  Outros tantos passageiros, porém, preferem se dedicar a outra janela, menor, que cabe na palma da mão.

Aliás, muita gente tem escolhido ver o mundo por meio dela. Lembro-me das imagens que captavam das arquibancadas na Copa do Mundo. Milhares de pessoas assistindo o jogo pela tela de seus respectivos smartphones dentro do estádio. Quem nunca viu isso acontecer em um show? Há dois ou três metros, no palco, está a banda preferida do sujeito que decidiu assistir o que se passa pela tal janelinha, ou na tela do computador, quando chegar em casa, no outro dia.

Longe de mim prescrever para qual das duas janelas as pessoas devem olhar. “Não quero seduzir seu coração turista, nem quero te vender o meu ponto de vista”, já diz a canção. Mas ainda assim um raciocínio é inevitável, para mim: se na primeira vou em qualquer lugar, sou qualquer coisa e sinto de tudo, às custas só da minha criatividade; na segunda, sigo na dependência de outros elementos... das redes sociais, da bateria, do péssimo 3G e das funções do telefone que o fabricante me fornece.

Pelo menos naquele momento prefiro ficar de fora do que me soa como uma  pasteurização do meu pensamento, prefiro seguir viagem sozinho, colado na janela que me apresenta o horizonte mais humano que ainda posso ter, nesses tempos da “mercadoria”.

P.S.: para dar os créditos a quem merece, a frase do primeiro parágrafo pertence a Karl Marx e está nos seus Manuscritos econômico-filosóficos. Já a canção que citada é “Eu não consigo odiar ninguém”, de Humberto Gessinger. O restante do texto nasceu em alguma janela de ônibus por aí. 

Link
Tags »
Leia Também »
Comentários »