16/03/2015 às 13h57min - Atualizada em 16/03/2015 às 13h57min

CINCO INVERTIDO

Num dos volumes de sua admirada obra literária, o Dr. Ronald Alvim Barbosa , de modo bem divertido, narra a mania de escrever no ar que seu tio Olintinho cultivava.

Nova  leitura do livro me relembrou que, em meus primeiros anos escolares, eu também possuía tal hábito, gerando em alguns incultos o pensamento de que eu “não estava batendo  bem da cabeça”.

            E a infundada  suspeita crescia na  medida em que os “ mexeriqueiros” tomavam conhecimento de que, por mais que eu fosse orientado a “desenhar”  corretamente o 5,  eu só escrevia o numeral  grafando-o invertido, como se eu estivesse vendo o 5 através de um espelho

            Em casa, cumprindo ordens paternas, minha irmã mais velha me colocava a ficar longamente escrevendo 5 e abundava o 5 espelhado.  Quando papai chegava do trabalho de 10 horas/dia, demonstrando imensa preocupação, perguntava se ocorrera algum progresso.  Era-lhe exibida minha tarefa principal em que, em folha de papel almaço ou mesmo no de embrulhar pão, liam-se mais erros que acertos. É que, de início, escrevendo devagarinho e com a atenção voltada unicamente para a tarefa, eu acertava, mas, pouco depois, eu me desconcentrava e os 5 invertidos abundavam às centenas. Um horror inexplicável !

Só no finalzinho do terceiro ano do curso primário é que consegui grafar 5 ao invés de 5 espelhado. Foi uma glória, comemorada com muita alegria por quem já temia minha impossibilidade de fazer corretamente uma coisa que toda criança acertava desde os primeiros dias de curso primário. O 5, escrito “certinho”, automaticamente virou assunto por alguns poucos dias nas conversas de minha professora, de alguns amigos, de toda minha família e até mesmo por vizinhos mais íntimos.

Além do “defeito” (ao escrever o 5) que foi corrigido numa ação conjunta, outra “coisa minha” preocupava o papai. Inicialmente, ele enaltecia o fato de eu chutar bola com o pé esquerdo e não dava a mínima quando eu levava comida à boca usando a mão esquerda. Quando, porém, eu fui para o Grupo Escolar é que se descobriu que eu era canhoto em tudo. Foi um “Deus nos acuda”.

Papai, que era um homem culto, emitiu ordem irracional, que mamãe achou natural e que minha professorinha acatou sem discussão: “amarrem a mão esquerda do Nelsinho quando ele for comer ou escrever, para que deixe de ser canhoto e se transforme em destro”.

Freud, se consultado, diria que a inversão na grafia do 5 pode ter tido origem em tal determinação paterna, a qual, hoje jamais seria acatada. 

 

Dentro de casa eu não me incomodava, mas na sala de aula, ao lado de coleguinhas de nenhum espírito de caridade, o aborrecimento era imenso. Um vexame muito humilhante!

Papai ganhou apenas parcialmente sua luta contra o “meu canhoto”, pois eu escrevo unicamente com a mão direita, porém para tudo o mais sou canhoto, devendo registrar que vez ou outra, à mesa de refeições, sou flagrado por mim mesmo a transferir da mão esquerda para a da direita e da mão direita para a da esquerda qualquer talher que tenha em mãos.

Meu avô paterno foi dentista prático, com habilidade para fazer dentaduras de altíssimo nível; meu avô materno recebia um terreno e nele edificava uma casa, fazendo ele mesmo com maestria os serviços de pedreiro, de eletricista, de bombeiro-hidráulico.

Deles nada herdei em habilidade manual. Do erro paterno querendo me transformar em destro, ficou muita sequela. Sou de absoluta inabilidade para o manuseio de qualquer ferramenta, a mais elementar que seja. Por exemplo: se eu for bater um prego, é quase certo ele entortar. Não me atrevo a trocar uma lâmpada, pois ela entrará enjambrada e agarrará em posição irremovível.

Apesar da repressão à minha canhotice, nunca houve um tapa, uma chinelada, um puxão de orelhas. Então, que fiquem alertas todos que erradamente desejem mudar o que vem com o bebê quando ele nasce: deixem fluir as qualidades inatas e ignorem os defeitos que não afrontem os bons costumes, não lhe prejudiquem a honra e nem desrespeitem as determinações legais.

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