Hoje reservamos o espaço desta coluna para uma viagem com o SAMBA PAULISTA embarcados no TREM DAS ONZE , cujo maquinista é um compositor-símbolo de São Paulo chamado JOÃO RUBINATO , mais conhecido artisticamente como ADONIRAN BARBOSA , retirado ADONIRAN do nome de um amigo de copo e BARBOSA veio do sambista Luiz BARBOSA, ídolo de João Rubinato . Nasceu em Valinhos , interior do estado , onde exerceu várias tarefas que rendesse algum trocado. Quando a família se mudou para Santo André, continuou com outras tarefas, sendo tecelão , serralheiro , garçom , carregador.
O artista surgiria em um programa de calouros na Rádio Cruzeiro do Sul . Não se contentando em ser cantor , tornou-se o compositor mais expressivo do samba paulista nos legando uma verdadeira coleção musical . Cantou a cidade de São Paulo , seus tipos ,sua gente , seus amores . Consagrou nomes , marcou o modo simples e errado de falar do homem do povo . Para entender um pouco o que ele realmente foi e significou , é necessário mais que simplesmente perceber suas qualidades artísticas de marco da Música Popular Brasileira . Também é preciso notar sua principal característica : transparência . Sua criação era suficientemente transparente para que pudéssemos olhar através dele e enxergar as ruas da cidade , os cortiços e o modo de vida do povo se processando nos silêncios , nos acordes e nos versos de seus sambas .
A carreira de Adoniran como compositor só explodiria na década de 50 com a gravação de SAUDOSA MALOCA , firmando assim sua imagem de grande cronista musical . Em sua andanças pelas ruas da cidade em companhia de seu cãozinho , conheceu moradores de rua e com eles participava das conversas e dos goles de aguardente. Foi quando estabeleceu amizade com Joca e Mato Grosso. Com sua ida ao Rio, quando retornou , viu que a maloca , onde os amigos dormiam , fora demolida , daí a criação de “ SAUDOSA MALOCA “ [ “ Se o senhor não tá lembrado / Dá licença de contá / Que aqui onde agora está / Esse edifício arto / Era uma casa véia / Um palacete assobradado / Foi aqui , seu moço / Que eu , Mato Grosso e o Joca / Construimo nossa maloca / Mais , um dia / Nóis nem póde se alembrá / Veio os homes c’as ferramenta / O dono mando derrubá ... ] “ . O motivo de SAUDOSA MALOCA fez Adoniran criar um samba que amparasse os sem-teto : “ ABRIGO DE VAGABUNDO “ . [ “ Eu arranjei o meu dinheiro / Trabalhando o ano inteiro / Numa cerâmica / Fabricando potes / E lá no alto da Moóca / Eu comprei um lindo lote dez de frente , dez de fundo/ Construí minha maloca/ Me disseram que sem planta / Não se pode construir / Mas quem trabalha tudo pode conseguir / João Saracura que é fiscal da Prefeitura / Foi um grande amigo, arrumou tudo pra mim / Por onde andará Joca e Mato grosso / Aqueles dois amigos / Que não quis me acompanhar / Andarão jogados na avenida São João / Ou vendo o sol nascer quadrado na detenção / Minha maloca a mais linda que eu já vi / Hoje está legalizada ninguém pode demolir / Minha maloca a mais linda deste mundo / Ofereço aos vagabundos / Que não têm onde dormir “ ] . Cada vez mais respeitado como compositor , Adoniran volta a caminhar pelos trilhos do sucesso : é a vez de “ TREM DAS ONZE “, lançada pelos Demônios da Garoa , chegando forte no Carnaval e tomando conta do povo na rua , cantada com muito entusiasmo. [ “ Não posso ficar nem mais um minuto com você / Sinto muito, amor , mas não pode ser / Moro em Jaçanã / Se eu perder esse trem / Que sai agora às onze horas / Só amanhã de manhã / Além disso mulher / Tem outra coisa , / Minha mãe não dorme / Enquanto eu não chegar / Sou filho único/ Tenho minha casa para olhar / E eu não posso ficar. “ ] . Adoniran recolhe uma história retirada de uma notícia de jornal que transcorreu em um cenário cruel e expressa em canção um lirismo de sofrimento , lamentando a perda da amada , por ignorar suas recomendações para atravessar a rua , retratando musicalmente o drama de IRACEMA .[ “ Iracema , eu nunca mais eu te vi / Iracema meu grande amor foi embora / Chorei, eu chorei de dor porque / Iracema meu grande amor foi você / Iracema , eu sempre dizia / Cuidado ao travessar essas ruas / Eu falava e você não me escutava não / Iracema você travessou contra mão / E hoje ela vive lá no céu / Ela vive bem pertinho de nosso Senhor / De lembrança guardo apenas suas meias e seus sapatos / Iracema, eu perdi o seu retrato /....... “ ] . Controvérsia na história musical sobre se o convite de em uma ida à casa Ernesto Paulelli , amigo de Adoniran , fazer um samba. Segundo o compositor , Arnesto , como ele o chamava , foi um furão , dando “ bolo “ na turma , imediatamente desmentida a história por Ernesto , motivo da controvérsia em “ SAMBA DO ARNESTO “. [ Arnesto nos convidou pro samba ele mora no Brás / Nós fumos não encontremos ninguém “/ Nós vortemos com uma baita de uma reiva/ Da outra vez nós num vai mais / Nós num semos tatu / No outro dia encontremo com Arnesto / Que pediu desculpas mais nós num aceitemo / Isso não se faz , Arnesto , nós não se importa / Mas você devia ter punhado um recado na porta /....”.... ( breque falado ) anssim : oia turma , num deu pra esperá . Aduvido que isso num faz mar, e num tem importança . De otra veis nóis te carça a cara “ ] . Em seu depoimento “ falar errado é uma arte senão vira deboche . O jeito coloquial de falar dos paulistanos , usado em suas canções , foi pretexto para a censura tentar vetar , em um álbum lançado por Adoniran com canções já gravadas , algumas músicas , dentre elas : “ SAMBA DO ARNESTO “ e “ TIRO AO ÁLVARO “ , esta em parceria com Oswaldo Moles . Para que as referidas músicas pudessem ser liberadas , deveriam virar : SAMBA DO ERNESTO e TIRO AO ALVO , e ainda modificando algumas palavras no interior dos versos como : revorve , tauba , artomove e outras . Adoniran não modificou sua obra, deixando para gravar depois que a ignorância passasse. Em uma interpretação genial , Elis Regina gravou “ TIRO AO ÁLVARO . [ “ De tanto levar / Frechada do teu olhar /Meu peito até / Parece sabe o que / Tauba / de tiro ao Álvaro / Não tem mais / Onde furar , não tem mais / Teu olhar mata mais / Que bala de carabina / Que veneno estricnina / Que peixeira de baiano / Teu olhar mata / Mais que atropelamento / de artomove / Mata mais / Que bala de revorve . “ ] . A nobre parceria com Vinícius de Morais , embora nunca chegaram a se conhecer , deu-se , quando Araci de Almeida recebeu uma carta com um poema de Vinícius , dizendo para fazer o que bem entendesse.Sendo amiga de Adoniran , entregou para musicar “ BOM DIA TRISTEZA “ [ / “ Bom dia tristeza / Que tarde tristeza / Você veio hoje me ver / Já estava ficando até meio triste / De estar tanto tempo longe de você / Se chegue tristeza / Se sente comigo / Aqui nesta mesa de bar / Beba do meu copo / Me dê o seu ombro / Que é para eu chorar / Chorar de tristeza / Tristeza de amar / “ ] . Matilde , a segunda esposa de Adoniran , com quem viveu a vida toda , certa madrugada ,despertou com gritos estridentes de “ Joga a chave “. O compositor vivia para a boêmia e numa de suas noitadas , de fogo, perde a chave de casa e não há outro jeito senão acordá-la . Foi repleta a discussão no dia seguinte , mas ele deu por encerrado o episódio , compondo “ JOGA A CHAVE “ [ “ Joga a chave , meu bem / Aqui fora ta ruim demais / Cheguei tarde perturbei teu sono / Amanhã eu não perturbo mais / Faço um furo na porta / Amarro um cordão no trinco / Pra abrir pro lado de fora / Não perturbo mais o teu sono / Chego à meia-noite e cinco / Ou então a qualquer hora .. “ ] . Sentado em uma mesa de bar , sem motivação para compor , de repente invade o recinto um inceto que o motivou e fez luzir um pré-texto na mente do compositor . Em uma alusão comparativa e presunçosa , compôs “ AS MARIPOSAS “. [ “ As mariposa quando chega o frio / Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra se esquentar/ Elas roda , roda , roda e dispois se senta/ Em cima do prato da lâmpida para descansar / Eu soou a lâmpida / E as muié é as mariposa / Que fica dando vorta em vorta de mim / Toda noite só pra me beijar “. ] . Adoniran sempre foi solidário com os amigos em todos problemas . João e Cibide , dois companheiros , perderam os barracos com seus pertences , resultante de um grande temporal. O compositor, sensibilizado com a situação dos dois , deu seu apoio em formato de poesia harmoniosa , compondo a música “ AGUENTA A MÃO , JOÃO ! “ [ “ Não reclama / Contra o temporal / Que derrubou teu barracão / Não reclama / Guenta a mão , João / com Cibide / Aconteceu coisa pior / Não reclama / pois a chuva / Só levou a tua cama / Não reclama / Guenta a mão , João / Que amanhã tu levanta / Um barracão muito melhor ..... “ ] . Em parceria com Carlinho Vergueiro , Adoniran construiu uma cena viva do trabalhador braçal , retratando o momento de repouso para refeição dos pedreiros de construção. Em um relato minucioso , a música faz-nos visualizar e imaginar um cenário nos versos de “ TORRESMO À MILANESA “ . [ “ O enxadão da obra bateu onze horas / Vam s’embora , João / Vam s’embora , João ( bis ) / Que é que você troxe na marmita , Dito ? / Truxe ovo frito , truxe ovo frito / E você beleza , o que é que você troxe / Arroz com feijão e torresma à milanesa / Da minha Teresa ! ...... ] .
Adoniran despertou , através de suas canções e de seus personagens , a vida amargurada da classe humilde , com uma linguagem do povo que retrata as condições sociais das pessoas que atuaram como centro de suas crônicas musicais . Alguns dos componentes da vida e da música de Adoniran Barbosa eram , inevitavelmente , elementos espalhados pelas ruas e pelos lugares em que ele transitou , nos bairros e nas vilas paulistanas. Mas , além disso , são termos e palavras que contam momentos da história do Brasil e do povo .
Mais uma vez o CANTINHO MUSICAL se acanha por não ter conseguido calçar em seu sapato 34 , divulgador das belas canções da Música Popular Brasileira , um maravilhoso e imenso pé musical 45 de Adoniran Barbosa . Diante de sua enorme galeria de belos sambas populares , o espaço limitado desta crônica reverencia , através de algumas de suas pérolas musicais , O GRANDE POETA POPULAR , ADONIRAN BARBOSA.
Waldemar Pedro Antonio e-mail [email protected]