O CANTINHO MUSICAL rende-se , neste exato momento , ao reconhecimento de que a RAÇA NEGRA é a verdadeira responsável pela beleza deste nosso ritmo envolvente que é , com certeza , o rótulo da cultura brasileira : O SAMBA . Foram os negros , inspirados em uma imensa luta da desigualdade , quem , com os seus sentimentos doloridos pelo preconceito racial , estrearam o belo grito de alerta para as desalmadas atitudes dos que não reconheciam o valor expresso em suas participações culturais no cenário do Brasil.
O samba originou-se dos antigos batuques trazidos pelos africanos que vieram como escravos para o Brasil. Esses batuques estavam geralmente associados a elementos religiosos que instituíam entre os negros uma espécie de comunicação ritual através da música e da dança, da percussão e dos movimentos do corpo. Os ritmos do batuque aos poucos foram incorporando elementos de outros tipos de música, sobretudo no cenário do Rio de Janeiro do século XIX. O samba é considerado por muitos críticos de música popular, artistas, historiadores e cientistas sociais como o mais original dos gêneros musicais brasileiros ou o gênero musical tipicamente brasileiro. A despeito da centralidade ou não do samba , como gênero musical nacional, sua origem (ou a história de sua origem) nos traz o registro de uma imensa mistura de ritmos e tradições que atravessam a história do país.
Neste artigo , com todo respeito aos afrodescendentes , o “ Cantinho Musical “ fará pequena amostragem de algumas belas poesias que vêm com mensagens embutidas no ritmo e na melodia do samba e que expressam , além de um quadro da formação étnica , uma resistência na luta para demonstrar a participação da raça negra no processo criativo da arte musical e repudiar , também , qualquer rejeição feita em relação à integridade dos negros na Sociedade Brasileira.
Iniciaremos nossa homenagem com um belo samba do mestre CANDEIA , compositor da Portela , que ordena , musicalmente , uma tomada de posição dos negros em relação ao seu valor diante de todas as circunstâncias , não se sujeitando ser foco de atenção somente no período carnavalesco . A mensagem determina que a raça negra se imponha diante de cada situação e que se valorize e não se humilhe , pois , assim agindo , fará o seu “ DIA DE GRAÇA “ . [ “ / Hoje é manhã de carnaval (ao esplendor) / As escolas vão desfilar (garbosamente) / Aquela gente de cor com a imponência de um rei, vai pisar na passarela (salve a Portela) / Vamos esquecer os desenganos (que passamos) / Viver alegria que sonhamos (durante o ano) / Damos o nosso coração, alegria e amor a todos sem distinção de cor / Mas depois da ilusão, coitado / Negro volta ao humilde barracão / Negro acorda é hora de acordar / Não negue a raça / Torne toda manhã dia de graça / Negro não se humilhe nem humilhe a ninguém / Todas as raças já foram escravas também / E deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias / E cante o samba na universidade / E verás que seu filho será príncipe de verdade / Aí então jamais tu voltarás ao barracão / Oh ! meu irmão / (bis) / . “ ]
No samba seguinte , perceberemos uma busca do fortalecimento da identidade negra. Uma interpretação possível orientará para o locutor que discorre sobre o tratamento desigual de que as pessoas negras são vitimas. Tal tratamento é simbolizado pela utilização do elevador de serviço, comum em prédios, sendo sua utilização destinada às pessoas que exercem algum tipo de atividade nos apartamentos, diferenciando-as dos moradores do mesmo, que usam habitualmente o elevador social. Jorge Aragão é bem direto , ao abordar o preconceito que acontece de maneira velada no país. Ao discriminar o elevador como o ambiente dessa prática , faz um recorte para ser mais incisivo ao diagnosticar costumes tristemente enraizados , expressando toda sua trajetória poética com uma enorme fortaleza verbal , garantindo a resistência contra todo preconceito racial , sugerindo que todos da raça negra se imponham diante das circunstâncias que limitam uma posição do negro no cenário social , com a finalidade de resgatar seus direitos e exigir a sua “ IDENTIDADE “. [ “ / Elevador é quase um templo / Exemplo pra minar teu sono / Sai desse compromisso / Não vai no de serviço / Se o social tem dono, não vai... / Quem cede a vez não quer vitória / Somos herança da memória / Temos a cor da noite / Filhos de todo açoite / Fato real de nossa história (2x) / Se o preto de alma branca pra você / É o exemplo da dignidade / Não nos ajuda, só nos faz sofrer / Nem resgata nossa identidade / . “ ] .
Ainda em uma bela mensagem presente em uma competente estrutura poética , Jorge Aragão , engajado nas questões do negro , sempre em busca de seus valores , expressa um enorme orgulho e uma imensa satisfação de fazer parte do êxito do samba, o que estampa no Poeta um contentamento deslumbrante pela certeza de que nossas canções tiveram grande aceitação na sociedade musical depois da insistência em valorizar a “ COISA DE PELE “ . [ “ / Podemos sorrir, nada mais nos impede / Não dá pra fugir dessa coisa de pele / Sentida por nós, desatando os nós /Sabemos agora, nem tudo que é bom vem de fora / É a nossa canção pelas ruas e bares / Nos traz a razão, relembrando Palmares / Foi bom insistir, compor e ouvir / Resiste quem pode à força dos nossos pagodes / E o samba se faz, prisioneiro pacato dos nossos tantãs / E um banjo liberta da garganta do povo as suas emoções / Alimentando muito mais a cabeça de um compositor / Eterno reduto de paz, nascente das várias feições do amor / Arte popular do nosso chão... é o povo que produz o show e assina a direção (2x) / . “ ] .
Dentre todas as vozes na arte do canto musical em defesa da raça negra , a canção , que Dona Ivone Lara interpreta , expressa , com versos simples e significativos , o verdadeiro valor do negro na sociedade , demonstrando traços positivos que os preconceituosos não veem e que estão estampados em um “ SORRISO NEGRO “ . [ “ / Um sorriso negro / Um abraço negro / Traz felicidade / Negro sem emprego / Fica sem sossego / Negro é a raiz da liberdade / Negro é uma cor de respeito / Negro é inspiração / Negro é silêncio é culto / Negro é a solução / Negro que já foi escravo / Negro é a voz da verdade / Negro também é amor / Negro também é saudade / . “ ] .
Nos noventa anos da “ Abolição da Escravatura “ , Nei Lopes e Wilson Moreira compuseram para “Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo “ , tendo , como mérito a gravação do mestre Candeia , um samba como resultado de minuciosa pesquisa sobre a arte negra , retratando , historicamente , uma referência “ AO POVO EM FORMA DE ARTE “ . [ “ / Quilombo pesquisou suas raízes / Nos momentos mais felizes / De uma raça singular , e veio / Pra mostrar esta pesquisa / Na ocasião precisa / Em forma de arte popular , a mais / A mais de quarenta mil anos atrás / A arte negra já resplandecia / Mais tarde a Etiópia milenar /Sua cultura até o Egito estendia / Daí o legendário mundo grego /A todo negro de etíope chamou /Depois vieram reinos suntuosos / De nível cultural superior / Que hoje são lembranças de um passado / Que a força da ambição exterminou / (BIS) / Em toda cultura nacional / Na arte , até mesmo na ciência / O modo africano de viver / Exerceu grande influência / O negro brasileiro / Apesar de tempos infelizes /Lutou , viveu , morreu e se integrou / Sem abandonar suas raízes / Por isso o Quilombo desfila /Devolvendo em seu estandarte /A história de suas origens / Ao povo em forma de arte / . ] “
Nas comemorações dos cem anos da abolição da escravatura, em 1988, a Mangueira , com o enredo “ Cem Anos de Liberdade , Realidade e Ilusão “ , questionou se realmente o negro tinha alcançado a liberdade, como diz o samba, "preso na miséria da favela". Deu à verde e rosa o segundo lugar. Autores: Hélio Turco, Jurandir e Alvinho. “ CEM ANOS DE LIBERDADE, REALIDADE E ILUSÃO “ . [ “ / O Negro samba / o negro joga capoeira / ele é o Rei da Verde e Rosa da Mangueira / Será que já raiou a liberdade / Ou se foi tudo ilusão / Será, que a lei Áurea tão sonhada / Há tanto tempo assinada / Não foi o fim da escravidão / Hoje dentro da realidade, onde está a liberdade / Onde está que ninguém viu / Moço não se esqueça que o negro / Também construiu, as riquezas do nosso Brasil / Pergunte ao Criador,pergunte ao criador quem pintou / esta aquarela / Livre do açoite da senzala / Preso na miséria da favela, / Sonhei....que Zumbi dos Palmares voltou / A tristeza do negro acabou / Foi uma nova redenção / SENHOR...(ah senhor!) / Veja a luta do bem contra o Mal / que tanto sangue derramou / contra o preconceito racial (2x) / O Negro samba / o negro joga capoeira / ele é o Rei da Verde e Rosa da Mangueira / . “ ] .
Ao descrever um fato que comumente ocorria na relação entre negros e brancos , Gilberto Gil denuncia , em uma linha irônica , o tratamento que recebiam os negros como serviçais , destacando na música um cenário de alta escravidão , demonstrando que toda sujeira feita pelas mãos dos brancos aparecia “ A Mão da Limpeza “ . [ “ / O branco inventou que o negro / Quando não suja na entrada / Vai sujar na saída, ê / Imagina só / Vai sujar na saída, ê / Imagina só / Que mentira danada, ê / Na verdade a mão escrava / Passava a vida limpando / O que o branco sujava, ê / Imagina só / O que o branco sujava, ê / Imagina só / O que o negro penava , ê / Mesmo depois de abolida a escravidão / Negra é a mão / De quem faz a limpeza / Lavando a roupa encardida, esfregando o chão / Negra é a mão / É a mão da pureza / Negra é a vida consumida ao pé do fogão / Negra é a mão / Nos preparando a mesa / Limpando as manchas do mundo com água e sabão / Negra é a mão / De imaculada nobreza / Na verdade a mão escrava / Passava a vida limpando / O que o branco sujava, ê / Imagina só / O que o branco sujava, ê / Imagina só / Eta branco sujão / . “ ] .
Wilson Simonal , em uma alegre e cadenciada música , exalta as manifestações dos negros em seu reduto , superando todas as dores e todos os problemas que fazem parte da trajetória de sua vida , através da canção : “ SAMBA DE NEGRO “ . [ “ / Subi lá no morro / Só pra ver o que o negro tem / Pra sambar gostoso / e fazer samba como ninguém / (bis) / Negro sambando esquece da dor / Negro transporta pro samba o amor / E faz sambar muita gente que nunca sambou / Negro se inspira na negra que passa / Não é poeta sem sua cachaça, / que ele não bebe sem antes salvar à xangô / Subi lá no morro / só pra ver o que o negro tem / Pra sambar gostoso / e fazer samba como ninguém / ( 2 X ) . “ ] .
Finalizando o artigo sobre a história e resistência da raça negra no Brasil , selecionamos uma canção de ARY BARROSO que faz uma narrativa poética , detalhando , historicamente , toda a trajetória dos negros com seus sofrimentos e suas angústias em uma linguagem típica e autêntica do seu dialeto em “ TERRA SECA “ . [ “ / O nêgo tá, moiado de suo / Trabáia, trabáia, nêgo / Trábaia, trabáia nêgo / As mãos do nêgo tá que é calo só / Trabáia, trabáia nêgo / Trabáia, trabáia, nêgo / Ai "meu sinhô"nêgo tá véio / Não aguenta ! / Essa terra tão dura, tão seca, poeirenta... / Trabáia, trabáia nêgo / Trabáia, trabáia, nêgo / O nêgo pede licença prá falá / Trabáia, trabáia, nêgo / O nêgo não pode mais trabaiá / Quando o nêgo chegou por aqui / Era mais vivo e ligeiro que o saci / Varava estes rios, estas matas, estes campos sem fim / Nêgo era moço, e a vida, um brinquedo prá mim / Mas o tempo passou / Essa terra secou ...ô ô / A velhice chegou e o brinquedo quebrou .... / Sinhô, nêgo véio tem pena de têr-se acabado / Sinhô, nêgo véio carrega este corpo cansado / . “ ] .
O preconceito racial é uma forma de exclusão social bastante comum no mundo, porém, pode-se observar que o Brasil, apesar de ser um país com população em sua maioria negra ou afrodescendente, o racismo é uma prática muito frequente, o que nos leva a pensar em qual seria o verdadeiro motivo para tamanha discriminação. O samba , ritmo de origem negra, coexiste no Brasil de forma harmoniosa e vem se fortalecendo de uma forma impressionante, revelando em suas poesias um forte instrumento de expressão, resistência e libertação dos valores negros, e um resgate de sua identidade étnica .
“ SE O TALENTO DAS PESSOAS FOSSE DETERMINADO PELA COR DA PELE , E SE A ARTE MUSICAL FOSSE VALORIZADA PELA SUA SUBSTÂNCIA CORANTE , CERTAMENTE O NOSSO SAMBA SERIA IDENTIFICADO PELA SUA NEGRITUDE ! “