26/09/2016 às 10h05min - Atualizada em 26/09/2016 às 10h05min

Alma negra com resistência e beleza na poesia dos S A M B A S

WALDEMAR PEDRO ANTÔNIO
      O   CANTINHO  MUSICAL   rende-se  , neste  exato  momento  ,  ao  reconhecimento          de  que  a  RAÇA  NEGRA  é  a  verdadeira  responsável  pela  beleza  deste  nosso  ritmo  envolvente   que  é  ,  com  certeza  ,  o  rótulo  da  cultura  brasileira :  O  SAMBA .   Foram  os  negros , inspirados  em  uma  imensa  luta  da  desigualdade  , quem ,  com  os  seus  sentimentos  doloridos pelo  preconceito racial , estrearam   o  belo  grito  de  alerta  para  as  desalmadas  atitudes  dos que  não  reconheciam o  valor expresso em suas participações  culturais  no  cenário  do  Brasil.
    
           O samba originou-se dos antigos batuques trazidos pelos africanos que vieram como escravos para o Brasil. Esses batuques estavam geralmente associados a elementos religiosos que instituíam entre os negros uma espécie de comunicação ritual através da música e da dança, da percussão e dos movimentos do corpo. Os ritmos do batuque aos poucos foram incorporando elementos de outros tipos de música, sobretudo no cenário do Rio de Janeiro do século XIX. O samba é considerado por muitos críticos de música popular, artistas, historiadores e cientistas sociais como o mais original dos gêneros musicais brasileiros ou o gênero musical tipicamente brasileiro. A despeito da centralidade ou não do samba , como gênero musical nacional, sua origem (ou a história de sua origem) nos traz o registro de uma imensa mistura de ritmos e tradições que atravessam a história do país.

      Neste  artigo , com  todo  respeito  aos  afrodescendentes , o  “ Cantinho  Musical  “   fará    pequena  amostragem de algumas  belas  poesias que  vêm  com  mensagens  embutidas no  ritmo e  na  melodia   do  samba  e  que  expressam  , além  de  um  quadro  da formação   étnica  , uma  resistência na  luta para  demonstrar a participação da  raça  negra no  processo  criativo  da  arte  musical  e  repudiar ,  também  , qualquer rejeição feita  em  relação  à  integridade  dos  negros na  Sociedade Brasileira.

  
Iniciaremos nossa  homenagem  com  um  belo  samba  do  mestre   CANDEIA , compositor  da  Portela ,   que  ordena ,  musicalmente ,  uma  tomada  de  posição  dos  negros  em  relação  ao  seu  valor  diante  de  todas  as  circunstâncias , não  se sujeitando  ser  foco  de  atenção  somente  no  período carnavalesco  . A  mensagem determina  que  a  raça negra   se  imponha  diante  de  cada  situação  e  que   se   valorize  e  não  se  humilhe  ,   pois ,  assim  agindo  , fará  o  seu      “   DIA  DE  GRAÇA  “ .  [ “ /  Hoje é manhã de carnaval (ao esplendor) / As escolas vão desfilar (garbosamente) / Aquela gente de cor com a imponência de um rei, vai pisar na passarela (salve a Portela) / Vamos esquecer os desenganos (que passamos) / Viver alegria que sonhamos (durante o ano) / Damos o nosso coração, alegria e amor a todos sem distinção de cor / Mas depois da ilusão, coitado / Negro volta ao humilde barracão / Negro acorda é hora de acordar / Não negue a raça / Torne toda manhã dia de graça / Negro não se humilhe nem humilhe a ninguém / Todas as raças já foram escravas também / E deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias / E cante o samba na universidade / E verás que seu  filho  será  príncipe  de  verdade / Aí então jamais  tu  voltarás ao  barracão  / Oh ! meu  irmão /  (bis) /  . “  ]     

No samba seguinte  , perceberemos uma busca do fortalecimento da identidade negra. Uma interpretação possível orientará  para o locutor  que discorre sobre o tratamento desigual de que as pessoas negras são vitimas. Tal tratamento é simbolizado pela utilização do elevador de serviço, comum em prédios, sendo sua utilização destinada às pessoas que exercem algum tipo de atividade nos apartamentos, diferenciando-as dos moradores do mesmo, que usam habitualmente o elevador social.  Jorge Aragão  é bem  direto , ao abordar o preconceito que acontece de maneira velada no país. Ao discriminar o elevador como o ambiente dessa  prática , faz um recorte para ser mais incisivo ao diagnosticar costumes tristemente enraizados , expressando toda sua trajetória poética com uma enorme  fortaleza verbal , garantindo a resistência  contra todo preconceito racial ,  sugerindo  que  todos  da  raça  negra  se imponham diante  das  circunstâncias que  limitam uma posição do negro  no  cenário  social , com a finalidade de  resgatar seus  direitos e  exigir a   sua      “  IDENTIDADE  “.            [ “ / Elevador é quase um templo / Exemplo pra minar teu sono / Sai desse compromisso / Não vai  no de serviço / Se o social tem dono, não vai... / Quem cede a vez não quer vitória / Somos herança da memória / Temos a cor da noite / Filhos de todo açoite / Fato real de nossa história  (2x)  / Se o preto de alma branca pra você / É o exemplo da dignidade / Não nos ajuda, só nos faz sofrer / Nem resgata nossa identidade / . “  ]  .  

Ainda em  uma  bela  mensagem presente em uma  competente  estrutura poética , Jorge Aragão , engajado nas  questões  do  negro , sempre  em  busca  de  seus  valores , expressa um  enorme orgulho e uma  imensa satisfação de fazer parte do êxito do samba, o  que  estampa    no Poeta    um contentamento deslumbrante pela certeza de que nossas canções tiveram  grande aceitação na sociedade musical depois da insistência em valorizar a    “  COISA  DE  PELE  “ .   [ “ / Podemos sorrir, nada mais nos impede / Não dá pra fugir dessa coisa de pele / Sentida por nós, desatando os nós /Sabemos agora, nem tudo que é bom vem de fora / É a nossa canção pelas ruas e bares / Nos traz a razão, relembrando Palmares / Foi bom insistir, compor e ouvir / Resiste quem pode à força dos nossos pagodes / E o samba se faz, prisioneiro pacato dos nossos tantãs / E um banjo liberta da garganta do povo as suas emoções / Alimentando muito mais a cabeça de um compositor / Eterno reduto de paz, nascente das várias feições do amor / Arte popular do nosso chão... é o povo que produz o show e assina a direção (2x) / . “  ]  . 

Dentre todas as vozes na arte do canto musical  em defesa  da raça negra , a canção , que  Dona Ivone Lara  interpreta ,  expressa , com  versos  simples e significativos , o  verdadeiro valor do negro na  sociedade , demonstrando  traços positivos que os preconceituosos não veem e que estão estampados em um    “  SORRISO  NEGRO  “ .  [ “ / Um sorriso negro / Um abraço negro / Traz felicidade / Negro sem emprego / Fica sem sossego / Negro é a raiz da liberdade  / Negro é uma cor de respeito / Negro é inspiração / Negro é silêncio é culto / Negro é a solução / Negro que já foi escravo / Negro é a voz da verdade / Negro também é amor / Negro também é saudade / . “ ]  . 

Nos noventa anos da “ Abolição da Escravatura “ ,  Nei Lopes e Wilson Moreira  compuseram para  “Grêmio  Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo “ ,  tendo ,  como  mérito   a  gravação  do  mestre  Candeia ,    um  samba  como  resultado de minuciosa  pesquisa  sobre a  arte negra , retratando ,  historicamente  , uma referência  “  AO  POVO  EM  FORMA  DE  ARTE “ . [ “ /  Quilombo pesquisou suas raízes / Nos momentos mais felizes / De uma raça singular , e veio / Pra mostrar esta pesquisa / Na ocasião precisa / Em forma de arte popular , a mais / A mais de quarenta mil anos atrás / A arte negra já resplandecia / Mais tarde a Etiópia milenar /Sua cultura até o Egito estendia / Daí o legendário mundo grego /A todo negro de etíope chamou /Depois vieram reinos suntuosos / De nível cultural superior / Que hoje são lembranças de um passado / Que a força da ambição exterminou / (BIS) / Em toda cultura nacional / Na arte , até mesmo na ciência / O modo africano de viver / Exerceu grande influência / O negro brasileiro / Apesar de tempos infelizes /Lutou , viveu , morreu e se integrou / Sem abandonar suas raízes / Por isso o Quilombo desfila /Devolvendo em seu estandarte /A história de suas origens / Ao povo em forma de arte / . ] “ 

Nas comemorações dos cem anos da abolição da escravatura, em 1988, a Mangueira ,  com o enredo  “  Cem  Anos  de  Liberdade , Realidade  e Ilusão “  ,  questionou se realmente o negro tinha alcançado a liberdade, como diz o samba, "preso na miséria da favela". Deu à verde e rosa o segundo lugar. Autores: Hélio Turco, Jurandir e Alvinho.  “   CEM ANOS DE LIBERDADE, REALIDADE E ILUSÃO  “   .   [ “  / O Negro samba  / o negro joga capoeira / ele é o Rei da Verde e Rosa da Mangueira  /   Será que já raiou a liberdade / Ou se foi tudo ilusão / Será, que a lei Áurea tão sonhada / Há tanto tempo assinada / Não foi o fim da escravidão / Hoje dentro da realidade, onde está a liberdade / Onde está que ninguém viu / Moço não se esqueça que o negro / Também construiu, as riquezas do nosso Brasil / Pergunte ao Criador,pergunte ao criador quem pintou / esta aquarela / Livre do açoite da senzala / Preso na miséria da favela, / Sonhei....que Zumbi dos Palmares voltou / A tristeza do negro acabou / Foi uma nova redenção / SENHOR...(ah senhor!) / Veja a luta do bem contra o Mal / que tanto sangue derramou / contra o preconceito racial (2x) / O Negro samba  / o negro joga capoeira / ele é o Rei da Verde e Rosa da Mangueira / .  “   ]  . 

Ao  descrever  um  fato  que  comumente  ocorria na relação entre negros e brancos , Gilberto  Gil  denuncia ,  em  uma  linha  irônica , o  tratamento que  recebiam os negros  como serviçais , destacando na  música um cenário de  alta  escravidão , demonstrando que toda sujeira  feita pelas  mãos  dos  brancos  aparecia  “  A Mão da  Limpeza “ .  [ “ / O branco inventou que o negro / Quando não suja na entrada / Vai sujar na saída, ê / Imagina só / Vai sujar na saída, ê / Imagina só / Que mentira danada, ê / Na verdade a mão escrava / Passava a vida limpando / O que o branco sujava, ê / Imagina só / O que o branco sujava, ê / Imagina só / O que o negro penava , ê / Mesmo depois de abolida a escravidão / Negra é a mão / De quem faz a limpeza / Lavando a roupa encardida, esfregando o chão / Negra é a mão / É a mão da pureza / Negra é a vida consumida ao pé do fogão / Negra é a mão / Nos preparando a mesa / Limpando as manchas do mundo com água e sabão / Negra é a mão / De imaculada nobreza / Na verdade a mão escrava / Passava a vida limpando / O que o branco sujava, ê / Imagina só / O que o branco sujava, ê / Imagina só / Eta branco sujão / . “  ]  . 

Wilson  Simonal  , em  uma  alegre e cadenciada música  , exalta  as manifestações  dos negros em seu reduto , superando  todas  as  dores  e todos os problemas que fazem parte  da trajetória de  sua vida  , através da canção  :  “  SAMBA  DE  NEGRO  “ .   [ “ /  Subi lá no morro / Só  pra ver o que o negro tem / Pra sambar gostoso / e fazer samba como ninguém / (bis) /  Negro sambando  esquece  da dor / Negro transporta pro samba o amor / E faz sambar muita gente que nunca sambou / Negro se inspira na negra que passa / Não é poeta sem sua cachaça, / que ele não bebe sem antes salvar à xangô / Subi lá no morro / só pra ver o que o negro tem / Pra sambar gostoso / e fazer  samba  como ninguém  /  (  2  X  ) .  “  ] . 

Finalizando   o  artigo     sobre  a história  e  resistência  da raça negra  no  Brasil ,  selecionamos  uma  canção  de  ARY  BARROSO  que faz  uma  narrativa  poética , detalhando , historicamente ,  toda a trajetória dos negros com  seus sofrimentos  e  suas  angústias   em uma  linguagem  típica  e autêntica do seu  dialeto  em  “   TERRA   SECA  “ .     [ “ /   O nêgo tá, moiado de suo / Trabáia, trabáia, nêgo  / Trábaia, trabáia nêgo / As mãos do nêgo tá que é calo só / Trabáia, trabáia nêgo / Trabáia, trabáia, nêgo / Ai "meu sinhô"nêgo tá véio  / Não aguenta ! / Essa terra tão dura, tão seca, poeirenta... / Trabáia, trabáia nêgo / Trabáia, trabáia, nêgo / O nêgo pede licença prá falá / Trabáia, trabáia, nêgo / O nêgo não pode mais trabaiá / Quando o nêgo chegou por aqui / Era mais vivo e ligeiro que o saci / Varava estes rios, estas matas, estes campos sem fim / Nêgo era moço, e a vida, um brinquedo prá mim / Mas o tempo passou / Essa terra secou ...ô ô / A velhice chegou e o brinquedo quebrou .... / Sinhô, nêgo véio tem pena de têr-se acabado / Sinhô, nêgo véio carrega este corpo cansado / . “  ]  .

    O preconceito racial é uma forma de exclusão social bastante comum no mundo, porém, pode-se observar que o Brasil, apesar de ser um país com população em sua maioria negra ou afrodescendente, o racismo é uma prática muito frequente, o que nos leva a pensar em qual seria o verdadeiro motivo para tamanha discriminação. O samba ,  ritmo de origem negra, coexiste no Brasil de forma harmoniosa e vem se fortalecendo de uma forma impressionante, revelando  em  suas poesias  um forte instrumento de expressão, resistência e libertação dos valores negros, e um resgate de sua identidade étnica .

 “  SE  O  TALENTO  DAS  PESSOAS  FOSSE  DETERMINADO  PELA  COR DA  PELE  , E  SE  A ARTE  MUSICAL FOSSE  VALORIZADA PELA  SUA  SUBSTÂNCIA  CORANTE ,  CERTAMENTE  O  NOSSO  SAMBA  SERIA  IDENTIFICADO  PELA  SUA  NEGRITUDE  ! “
 
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