Em 1862, o jovem médico francês Alexandre Bréthel chega ao vale do Rio Carangola, na Zona da Mata mineira, contratado para administrar uma fazenda dos herdeiros de Jean de Monlevade, também francês, fundador da primeira usina siderúrgica do Brasil na cidade que hoje carrega seu nome aportuguesado. Bréthel nunca mais voltaria para a França. Estabelecido posteriormente como médico, farmacêutico e fazendeiro, viveria na região de Carangola, na divisa entre Minas, Rio de Janeiro e Espírito Santo, por 39 anos.

No início da década de 70 do século passado, a professora do Departamento de Português da Universidade de Rennes II, na Bretanha, Françoise Massa, descobre no sótão de uma casa senhorial de Rennes um conjunto de 68 cartas enviadas do Brasil por Bréthel inicialmente a um tio e, a partir da morte deste, para uma prima.

Tradução mineira

As cartas traziam descrições pormenorizadas das paisagens física, social e econômica da Zona da Mata mineira, então uma fronteira de colonização. Françoise se encanta com a riqueza das imagens e utiliza o conjunto de cartas como base para seu doutorado, cuja tese foi publicada em 1975 no livro “Alexandre Bréthel: Pharmacien et Planteur au Carangola”, com tiragem reduzidíssima de 500 exemplares e circulação quase que exclusiva entre acadêmicos da Bretanha.

Já nos anos 2000, a jornalista pela UFMG e graduada em letras na França, Heloísa Azevedo, descobre o livro de Françoise, do qual já tinha notícias por citações em outros trabalhos, num sebo no Rio de Janeiro. Heloisa, que é natural da Zona da Mata e pesquisadora diletante da história da região, não se conformaria em ver uma obra de tal vulto sem tradução para o português. O contato com Françoise, no entanto, só viria a acontecer em 2012, que acolheu com gosto a sugestão da tradução.

Bréthel fala dos índios Puris que ainda viviam na região, da escravidão, da violência na fronteira civilizatória

É essa a história resumidíssima do livro lançado na semana passada em BH e Carangola por Françoise Massa, “Um Francês no Vale do Carangola”, da editora belo-horizontina Crisálida. É, de fato, de se admirar que o livro tenha passado tanto tempo desconhecido pelos brasileiros. Em primeiro lugar, por sua autora ser intelectual de primeira linha na França e por seu interesse por Minas e pelo Brasil.

Françoise, vale o registro, é viúva de Jean Michel Massa, diretor do Departamento de Português da Universidade de Rennes e um dos maiores especialistas em Machado de Assis, autor dos fundamentais “Dispersos de Machado de Assis” e “A Juventude de Machado de Assis 1839-1870”.

Previsões

E, em segundo lugar, pela importância da descrição pelo olhar estrangeiro de uma Minas Gerais em absoluta transformação na segunda metade do século 19. Bréthel fala dos índios Puris que ainda viviam na região, da escravidão, da violência na fronteira civilizatória, da derrubada das matas para o plantio do café, da rudeza da alimentação, da precariedade sanitária, das dificuldades do transporte e da espera pela chegada da estrada de ferro, e dos sinais de civilização representados pelos primeiros hotéis e pela troca do óleo de baleia pelo gás na iluminação pública, entre outros. “De certa forma, as cartas compõem um romance. É a história da região e da gente que vivia ali”, diz Françoise.

Além do mergulho antropológico que faz em suas cartas, Bréthel também antevê o futuro. Dois anos antes da instauração da República, já afirmava que Dom Pedro II não suportaria a pressão política dos fazendeiros revoltados com o fim da escravidão.

Escreveria, ainda, que “em 30 anos não haverá um só Puri por estas terras”. Também faz relatos de fundo ecológico, como o da erosão nas encostas dos morros da Zona da Mata e a degradação dos rios provocada pelo desmatamento e assoreamento.