06/08/2020 às 09h26min - Atualizada em 06/08/2020 às 09h26min

CAIXA MURILO

No Nacional-Catete havia um funcionário de nome Murilo, preto retinto, único a exercer a função de caixa. Eu nunca soube dele nada além disto, pois sempre chegava em cima da hora, pegava o material de trabalhar (dinheiro e não mais sei o quê) e se enfiava dentro de um cubículo à direita da entrada, onde somente havia uma portinhola que dava para o interior da agência. Nem na hora do lanche o Murilo aparecia, talvez fechando o movimento para guardar o dinheiro no cofre e, no dia seguinte, retornar à imutável rotina.
 
Sem ventilador, sem ar-condicionado, suava muito e isto não lhe dava boa aparência. Na verdade, lhe dava má aparência, ainda mais que as roupas que usava eram de uma simplicidade franciscana, todas elas pedindo aposentadoria, como camisas com punhos e golas puídos e as calças de grande largueza, parecendo bombachas ou de caubói, sempre caindo, talvez pelo hábito que o Murilo possuía de, sem apertar corretamente o corrião, amarrá-la bastante abaixo do umbigo, forçado por sua protuberância estomacal,
 
Talvez por seu modo discreto de viver, era um dos poucos que nunca tinha tido qualquer entrevero com o mesclado corpo de funcionários.
 
Fazia parte das tarefas do Murilo juntar certo número de cédulas do mesmo valor e fazer um “amarrado” para, de vez em quando, tudo ser remetido à tesouraria central na avenida Presidente Vargas. Cada vez com menos espaço de tempo, chegava um aviso de débito para a conta dele, sob a alegação de que, no “amarrado”, faltava uma ou outra cédula. Daí foi um pulo para surgirem murmúrios de que o Murilo estava “roubando” dinheiro no caixa, com maldosos dizendo “está gastando tudo em pinga”.
 
Eu não me imiscuí, aliás, nem dei atenção às conversas. Tempos depois, quando o Murilo já chorava de nervoso, pois seu salário já não comportava mais pagar as notas que faltavam nos “amarrados”, descobriu-se que os furtos eram praticados por outrem na própria tesouraria da Direção Geral, imputando-se injustamente ao pobre Murilo a culpa.
 
Foram praticamente simultâneos a chegada da comunicação, o anúncio dela em voz alta pelo contador Antônio Pereira Gomes e a chegada do Murilo para mais um dia de trabalho. Ele até se assustou quando quase todos corremos para ele, gritando felizes, abraçando-o como se ele tivesse feito o gol de conquista de um título de futebol para a seleção brasileira.
 
Foi a primeira demonstração de solidariedade coletiva que presenciei em minha vida de trabalhador, o que muito me tocou o coração sentimental.
 
Durante alguns dias, a partir da chegada à agência da notícia de que o “bandido” não era o Murilo e que na DG haviam descoberto o gatuno, a agência se colocou em festa e, em todos os momentos e não apenas na hora do lanche, nos rostos dos walmapianos do Catete fulgurava a felicidade de saber que o caixa Murilo era 100% inocente.

Saí da agência em dezembro/62 e nunca mais do sofrido colega tive qualquer notícia.

21.05.2014
Nelsinho
 
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