22/09/2021 às 18h24min - Atualizada em 22/09/2021 às 18h24min

Paulo Freire: o Deus e o Diabo na terra da ignorância intelectual

Dora Stephan (*)
Foto: Instituto Paulo Freire
Em conversa ontem com o meu diretor e amigo Rodrigo Fialho, lembrávamos de tempos prodigiosos que vivemos no Brasil, quando chegamos a ter ninguém menos do que Gilberto Gil, como Ministro da Cultura. Além de ser um dos músicos mais completos do Brasil, Gil  também escreve artigos científicos que versam sobre cultura, nos quais cita autores como o antropólogo americano Marshall Salins (1930-1921), o que demonstra sua sofisticação em termos de conhecimento na área acadêmica. Recordamo-nos também que tivemos como Ministro da Educação alguém do porte do filósofo e professor Renato Janine Ribeiro. Isso somente para citar alguns exemplos. Na galeria de ministros da era Lula e Dilma, e mesmo de FHC, constam fotografias de intelectuais brilhantes.

Não entrarei em detalhes acerca do que pretendíamos comparar com a conversa. Basta ver os nomes que hoje estão à frente da maioria das pastas ministeriais e ver o “pedigree” de seus ocupantes. Fiz esse pequeno preâmbulo apenas para mostrar que em nosso país há alhos e bugalhos, e que devem ser devidamente separados.

Na tentativa de pensar alguns fenômenos atuais e que dizem respeito às polarizações existentes no país, temos hoje os “freireanos”, ou seja, estudiosos ou mesmo simpatizantes da grandiosa obra do pedagogo Paulo Regius Neves Freire (1921-1997) e os “antifreireanos”, isto é, aqueles que simplesmente odeiam o patrono da Educação do Brasil, sem mesmo ter lido um único parágrafo de um livro dele.

Em artigo assinado pelo jornalista e escritor brasileiro Nirlando Beirão (1948-1920), publicado pela revista Carta Capital, em 20 de fevereiro de 2019, pelo título e subtítulo é possível depreender o quanto o pedagogo pernambucano, reconhecido internacionalmente, é demonizado: O demônio usa barba – Paulo Freire e essa perniciosa ideia de que quem usa barba deve aprender a pensar por conta própria.

Encontro-me entre os “freireanos” que, embora não seja uma profunda conhecedora da obra de PF, adoto alguns de seus livros em uma de minhas disciplinas e sou, acima de tudo, uma admiradora de seu legado. Sem querer entrar no mérito da questão, com base nos dizeres de Beirão, “Paulo Freire era sim um homem de esquerda, na medida em que se ofendia com o capitalismo bárbaro e sonhava um Estado de Bem-Estar Social próximo dos países avançados da Europa Setentrional”. Não necessariamente um comunista, pecha que lhe é imputada, sobretudo pelos conservadores. Muito menos um sectário, conforme Beirão.

O que mais me chama a atenção na obra de Paulo Freire é a capacidade que tinha de ser um pensador muito à frente de seu tempo e que, à sua maneira, já preconizava algumas epistemologias, como o multiculturalismo (ou multiculturalismos) e o pós-colonialismo, hoje tão em evidência. É possível pinçar em seus livros prenúncios dessas epistemologias. Ambas primam pelo princípio da alteridade. E se eu fosse escolher uma palavra-chave para me referir à obra de PF, sem sombra de dúvida usaria ALTERIDADE.

E é justamente sobre isso que gostaria de destacar em seu legado científico. Alteridade aqui tomada no sentido colocado pelo biólogo chileno, com uma forte pegada  sócio-antropológica, Humberto Maturana (1928-2021), que a define como: “A aceitação do outro junto a nós na convivência, é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade.”

Paulo Freire não teorizou sobre esse termo. Ele o aplicou verdadeiramente em sua prática, ou melhor dizendo, em sua práxis. Poderia citar aqui vários trechos de sua obra que corroboram com essa tese que hora defendo, porém, para que não me alongue, reproduzirei apenas um, extraído do livro Pedagogia da Esperança: “[...] No mínimo, tem de levar em conta a existência do ‘aqui’ do educando (e não do seu) e respeitá-lo. No fundo, ninguém chega lá partindo de lá, mas de um certo aqui. Isto significa, em última análise, que não é possível ao (a) educador(a) desconhecer, subestimar ou negar ‘os saberes de experiências feitos’ com que os educandos chegam à escola”.
Se a obra de Paulo Freire é considerada pelos “antifreireanos” de diabólica, me curvo ao diabo!!!
 
(*) Dora Stephan – jornalista e professora da UEMG/ Unidade Leopoldina.
 


 
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