Encerrando a série de artigos sobre Chico Buarque de Holanda , o CANTINHO MUSICAL vai explorar as canções cujo tema versará sobre uma resistência poética , completando os três eixos semânticos , na demonstração de Chico : “ O POLÍTICO “ .
“ HOJE VOCÊ É QUEM MANDA , FALOU TÁ FALADO ..... “ este era o lema de uma ditadura, durante o regime militar , instaurado no Brasil , no ano de 1964 . Esse período ditatorial e vigilante policiava , com muita força , os contrários às suas convicções políticas . Foi diante desse cenário que os artistas da música se uniram para construir canções com discursos poéticos , recheados de metáforas e ambiguidades, contestando a opressão . Tal movimento de resistência teve em CHICO BUARQUE DE HOLANDA o exponencial das críticas políticas , driblando a censura rígida dos militares . Os censores da ditadura convocam Chico , para inquirir sobre os sentidos da música “ APESAR DE VOCÊ “ . Contam que no DOPS um general disse para Chico que a música tinha dois sentidos e , ele respondeu : _ General , só há um ! Então o general perguntou : Qual ? E Chico respondeu : O senhor não achou dois ? Escolha um !!! E aí a canção passou ser símbolo da resistência .
[ “ / Hoje você é quem manda / Falou , tá falado / Não tem discussão / A minha gente hoje anda/ Falando de lado / E olhando pro chão / Você que inventou esse estado / Inventou de inventar / Toda escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventa / O perdão / Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / Eu pergunto a você / Onde vai se esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar / Água nova brotando / E a gente se amando / |
Sem parar / Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juro , juro / Todo esse amor reprimido / Esse grito contido / Esse samba no escuro / Você que inventou a tristeza / Ora , tenha a fineza / De desinventar / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada / Nesse meu penar / Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / Inda pago pra ver / O jardim florescer / Qual você não queria / Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença / E eu vou morrer de rir / Que esse dia há de vir / Antes que você pensa / Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / Você vai ter que ver / A manhã renascer / E esbanjar poesia / Como vai se explicar / Vendo o céu clarear / De repente , impunemente / Como vai abafar / Nosso coro a cantar / Na sua frente / Apesar de você / Amanhã há de ser / outro dia / Você vai se dar mal / Etc. e tal / Larará, larará/ . “ ] .
Chico não podia compor nada que já estavam de olho para censurar . Foi aí que , burlando a vigilância militar , criou o pseudônimo de JULINHO DA ADELAIDE , produzindo uma canção que denunciava a barbárie dos ditadores . “ ACORDA , AMOR “
[ “ / Acorda , amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão , que aflição / Era a dura , numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame , chame , chame, Lá / Chame , chame o ladrão , chame o ladrão / Acorde , amor / Não é mais pesadelo nada / Tem gente já no vão da escada / Fazendo confusão , que aflição / São os homens / E eu aqui parado de pijama / Eu não gosto de passar vexame / Chame , chame , chame / Chame o ladrão |
, chame o ladrão / Se eu demorar uns meses / Convém , às vezes , você sofrer / Mas depois de um ano eu não vindo / Ponha a roupa de domingo / E pode me esquecer / Acorda , amor / Que o bicho e brabo e não sossega / Se você corre , o bicho pega / Se fica , não sei não / Atenção ! / Não demora , dia desses chega sua hora / Não discuta à toa , não reclame / Chame , chame lá , chame , chame / Chame o ladrão , chame o ladrão , chame o ladrão / ( Não esqueça a escova , o sabonete e o violão ). / “ ] .
CHICO BUARQUE e GILBERTO GIL , dois gênios da MÚSICA POPULAR BRASILEIRA , compuseram , narrando poeticamente , o drama da tortura no Brasil pela ditadura militar . A música é um panfleto que expressa distância dos sofrimentos da população aterrorizada com o regime autoritário . Através de uma inteligente manobra com as palavras , a dupla utiliza , semanticamente , e com muita habilidade , duas leitura de um mesmo vocábulo fonológico . Um com sentido imperativo : CALE-SE ; o outro , rótulo de um objeto sagrado “ CÁLICE “ .
[ “ / Pai , afasta de mim esse cálice / Pai , afasta de mim esse cálice / Pai , afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue ( BIS ) / Como beber dessa bebida amarga / Tragar a dor , engolir a labuta / Mesmo calada a boca , resta o peito / Silêncio na cidade não se escuta / De que me vale ser filho da santa / Melhor seria ser filho da outra / Outra realidade menos morta / Tanta mentira, tanta força bruta / ( Pai, afasta de mim esse cálice ......... / De vinho tinto de sangue ) |
/ Como é difícil acordar calado / Se na calada da noite eu me dano / Quero lançar um grito desumano / Que é uma maneira de ser escutado / Esse silêncio todo me atordoa / Atordoado eu permaneço atento / Na arquibancada pra a qualquer momento / Ver emergir o monstro da lagoa / ( Pai, afasta de mim esse cálice ....... De vinho tinto de sangue ) / De muito gorda a porca já não anda / De muito usada a faca já não corta / Como é difícil , pai , abrir a porta / Essa palavra presa na garganta / Esse pileque homérico no mundo / De que adianta ter boa vontade / Mesmo calado o peito , resta a cuca / Dos bêbados do centro da cidade / ( Pai, afasta de mim esse cálice ...... / De vinho tinto de sangue ) / Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado / Quero inventar o meu próprio pecada / Quero morrer do meu próprio veneno / Quero perder de vez tua cabeça / Minha cabeça perder teu juízo / Quero cheirar fumaça de óleo diesel / Me embriagar até que alguém me esqueça / . “ ] .
Chico Buarque e Milton Nascimento compuseram , com muita maestria e sutileza , uma bela canção para homenagear Zuzu Angel , mãe de Stuart Angel , morto pela ditadura militar , questionando e protestando através do lamento de uma mulher guerreira , que , também , foi vítima do Regime Militar , pelo aparecimento do corpo do filho , chegando à angústia do desespero e do sofrimento de alguém que carrega na raiz do seu nome a candura e a pureza de um anjo : “ ANGÉLICA “ .
[ “ / Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho ? / Só queria embalar seu filho / Que mora na escuridão do mar / Quem é essa mulher / Que canta sempre esse lamento ? / Só queria lembrar o tormento / Que fez meu filho suspirar / Quem é essa mulher / Que canta sempre esse mesmo arranjo ? / Só queria agasalhar meu anjo / E deixar seu corpo descansar / Quem é essa mulher / Que canta como dobra o sino ? / Queria cantar para o meu menino / Que ele já não pode mais cantar / . ] . |
Para não sofrer censura , Chico cria , na canção , duas vertentes de interpretação : poética e protesto . Na referência poética , mascara com jogos metafóricos a opressão excessiva do regime ; em relação ao protesto , faz alusão ao poder e à força da ditadura militar , cerceando a liberdade como direito do cidadão. A música , com seu tema expresso em um movimento rotativo , é reflexo de uma constante mudança e que se neutraliza diante de um poder ditatorial denominado : “ RODA VIVA “
[ “ / Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu ... / A gente quer ter voz ativa / Em nosso destino mandar / Mas eis que chega roda viva / E carrega o destino pra lá ... / Roda mundo , roda gigante / Roda moinho , roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração ... / A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir / Faz tempo que a gente cultiva / |
A mais linda roseira que há / Mas eis que chega roda viva / E carrega a roseira pra lá... / Roda mundo roda gigante ....... nas voltas do meu coração / A roda da saia mulata / Não quer mais rodar não senhor / Não posso fazer serenata / A roda do samba acabou / A gente toma a iniciativa / Viola na rua a rolar / Mas eis que chega roda viva / E carrega a viola pra lá... / Roda mundo roda gigante ....... nas voltas do meu coração / O samba , a viola , a roseira / Que um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / Que a brisa primeira levou ... / No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega roda viva / E carrega a saudade pra lá .../ Roda mundo roda gigante / Roda moinho , roda pião / o tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração ... / ( 4 X ) . “ ] .
O teatrólogo Augusto Boal que estava exilado em Lisboa , na época do regime militar , queixava-se de que os amigos não mandavam notícias do Brasil . Então Chico compôs uma carta-canção , saudando os amigos e descrevendo a situação no Brasil : “ MEU CARO AMIGO “ .
[ “ / Meu caro amigo me perdoe , por favor / Se eu não lhe faço uma visita / Mas como agora apareceu um portador / Mando notícia nessa fita / Aqui na terra estão jogando futebol / Tem muito samba , muito choro e rock’ n’ roll / Uns dias chove , noutros dias bate sol / Mas o que eu quero lhe dizer que a coisa aqui está preta / Muita mutreta pra levar a situação / Que a gente vai levando de teimoso de pirraça / E a gente vai tomando que , também , sem a cachaça / Ninguém segura esse rojão / Meu caro amigo eu não pretendo provocar / Nem atiçar sua saudade / |
Mas acontece que não posso me furtar / A lhe contar as novidade / ( Aqui na terra tão jogando futebol ....... que a coisa aqui tá preta / É pirueta pra cavar o ganha-pão / Que a gente vai cavando só de birra , só de sarro /Que a gente vai fumando que , também , sem um cigarro / Ninguém segura esse rojão / Meu caro amigo eu quis até telefonar / Mas a tarifa não tem graça / Eu ando aflito pra fazer você ficar / A par de tudo que se passa / ( Aqui na terra tão jogando futebol ...... a coisa aqui tá preta ) / Muita careta pra engolir a transação / E a gente tá engolindo cada sapo no caminho / E a gente vai se amando que , também , sem um carinho / Ninguém segura esse rojão / Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever / Mas o correio andou arisco / Se me permite , vou tenta lhe remeter / Notícias frescas nesse disco / ( Aqui na terra tão jogando futebol ......... a coisa aqui tá preta ) / A Marieta manda um beijo para os seus / Um beijo na família , na Cecília e nas crianças / O Francis aproveita pra também mandar lembranças / A todo pessoal / Adeus ! / . “ ] .
Ao fim da Ditadura Militar , com o Processo de Abertura Política , Chico Buarque lança uma alegoria poética em que a letra da música , metaforicamente , faz uma referência ao sistema político opressivo , que atuou no Brasil a partir de 1964 , comparando a mítica simbólica do “ Carnaval Carioca “ com a transfiguração do poder em liberdade . Todo o enredo musical desfila , esclarecendo , em uma montagem política e denunciante , a opressão exercida em épocas passadas , no momento em que o bloco “ VAI PASSAR “ .
[ “ / Vai passar / Nessa avenida um samba / Popular / Cada paralelepípedo / Dessa cidade / Essa noite / Vai se arrepiar / Ao lembrar / Que aqui passaram / Sambas imortais / Que aqui sangraram pelos / Nossos pés / Que aqui sambaram / Nossos ancestrais / Num tempo / Página infeliz da nossa / História / Passagem desbotada na / Memória / Das nossas novas / Gerações / Dormia / A nossa pátria mãe tão / Distraída / Sem perceber que era / Subtraída / Em tenebrosas / Transações / Seus filhos / Erravam cegos pelo / Continente / |
Levavam pedras feito / Penitentes / Erguendo estranhas / Catedrais / E um dia , afinal / Tinha direito a uma / Alegria fugaz / Uma ofegante epidemia / Que se chamava carnaval / O carnaval , o carnaval / Vai passar / Palmas pra ala dos / Barões famintos / O bloco dos napoleões / Retintos / E os pigmeus do bulevar / Meu Deus , vem olhar / Vem ver de perto uma / Cidade a cantar / A evolução da liberdade / Até o dia clarear / Ai , que vida boa , olerê / Ai, que vida boa , olará / O estandarte do sanatório / geral vai passar / Ai, que vida boa , olerê / Ai, que vida boa , olará / O estandarte do sanatório / Geral / Vai passar / . “ ] . “ Minha terra tem palmeiras , / Onde canta o Sabiá ..... “” , “ Canção do Exílio “ , de Gonçalves Dias , serviu de modelo para que Chico Buarque e Tom Jobim criassem uma belíssima canção , vencedora do Festival Internacional da Canção , no Rio de Janeiro , que canta a própria alma do país que já não há , usando uma sutileza metafórica , não percebida pelo público na época , que mascarava um protesto em relação à situação política no Brasil , tendo como símbolo um pássaro que não canta engaiolado : “ SABIÁ “
[ “ / Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Uma sabiá / Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Vou deitar à sombra de uma palmeira / Que já não há / Colher a flor / Que já não dá / E algum amor talvez possa espantar / As noites que eu não queria / E anunciar o dia / Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Não vai ser em vão / Que fiz tantos planos / De me enganar / Como fiz enganos / De me encontrar / Como fiz estradas / De me perder / Fiz de tudo e nada / De te esquecer / Vou voltar / |
Sei que ainda vou voltar / E é pra ficar / Sei que o amor existe / Não sou mais triste / E a nova vida já vai chegar / E a solidão vai se acabar / E a solidão vai se acabar / . “ ] . Nas letras desta canção composta por Chico Buarque e Milton Nascimento , há uma especulação , gerando dúvidas e expressando , em forma de questionamento , a respeito da liberdade do pensar que está na natureza livre do ser humano , estendendo-se , também , para aqueles que cerceavam a liberdade de atitude , controlada , policiada e oprimida , naquela época , pelo regime militar .
A pergunta que especula , poeticamente , em toda música , é : “ O QUE SERÁ ? ( À FLOR DA TERRA ) “
[ “ / O que será , que será ? / Que andam suspirando pelas alcovas / Que andam sussurrando em versos e trovas / Que andam combinando no breu das tocas / Que anda nas cabeças anda nas bocas / Que anda acendendo velas nos becos / Que estão falando alto pelos botecos / Que gritam nos mercados que com certeza / Está na natureza / Será que será ? / O que não tem certeza nem nunca terá / O que não tem conserto nem nunca terá / O que não tem tamanho / O que será , que será ? / Que vive nas idéias desses amantes / |
Que cantam os poetas mais delirantes / Que juram os profetas embriagados / Que está na romaria dos mutilados / Que está na fantasia dos infelizes / Que está no dia a dia das meretrizes / No plano dos bandidos dos desvalidos / Em todos os sentidos ... / Será , que será ? / O que não tem decência nem nunca terá / O que não tem censura nem nunca terá / O que não faz sentido ... / O que será , que será ? / Que todos os avisos não vão evitar / Por que todos os risos vão desafiar / Por que todos os sinos irão repicar / Por que todos os hinos irão consagrar / E todos os meninos irão desembestar / E todos os destinos irão se encontrar / E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá / Olhando aquele céu vai abençoar / O que não tem governo nem nunca terá / O que não tem vergonha nem nunca terá / O que não tem juízo ... ( 2 X ) / . “ ] .
Foi uma grande ousadia do “CANTINHO MUSICAL “ achar que seria fácil fazer uma amostra das obras de Chico Buarque de Holanda , uma vez que elas são infindáveis e de um requinte maravilhoso . Mas soubemos escolher nas três vertentes propostas no início do primeiro artigo as pérolas musicais desse GÊNIO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA .
“ A COMPETÊNCIA MUSICAL COM QUE AS EXPRESSÕES MÍTICAS BROTAM , COM MUITA FLUÊNCIA , NAS COMPOSIÇÕES POÉTICAS DESSE MENESTREL DAS PALAVRAS , ATINGINDO , MARAVILHOSAMENTE , OS SENTIMENTOS DOS AMANTES DA BOA MÚSICA , CONFIRMA QUE ESSE PROCESSO CRIATIVO É , TAMBÉM , COISA DE DEUS ! “
Waldemar Pedro Antonio e-mail : [email protected]