GILBERTO GIL conseguiu congregar musicalmente grandes parceiros da MPB , compondo verdadeiros sucessos em canções que o fizeram se consagrar e destacar nos cenários nacional e internacional da música . Politicamente , também reuniu seguidores de sua própria ideologia , caracterizando-se em verdadeiro líder de algumas posições e convicções políticas . Natural da Bahia , teve sua trajetória de vida artística constituída de muitos obstáculos diante de uma Ditadura Militar . Fundador do Movimento Tropicalista cujo teor temático era de uma resistência à opressão , Gil e Caetano Veloso , em 1968 , foram presos devido ao “ Ato Institucional no. 5 “ , que cerceou a liberdade artística e a do cidadão . Soltos em regime de confinamento , Gil foi obrigado a abandonar o País devido à pressão política , mudando-se para Londres . Autor de um acervo musical maravilhoso , demonstra , em suas belas canções , um genial jogo metafórico com as palavras , registrando todas as ocorrências indesejáveis de sua vida .
O CANTINHO MUSICAL fará uma pequena exposição do cenário artístico de Gilberto Gil , começando com uma canção que fez grande sucesso no Brasil com um tema - dito pelo próprio Autor - que representava um “ BYE, BYE “ do País , questão tratada com o Exército Brasileiro . Agora sabemos o emprego de algumas expressões presentes nas letras como REALENGO ( que não foi para rimar com Flamengo ) , um quartel no Rio de Janeiro onde Gil esteve encarcerado , sendo debochado pelos soldados em alusão à sua saída do país com “ AQUELE ABRAÇO !
“ [ “ / O Rio de Janeiro continua lindo / O Rio de Janeiro continua sendo / O Rio de Janeiro , fevereiro e março / Alô , alô Realengo , aquele abraço ! / Alô , torcida do Flamengo – aquele abraço / Chacrinha continua balançando a pança / E buzinando a moça e comandando a massa / E continua dando as ordens no terreiro / Alô , alô , seu Chacrinha – velho guerreiro / Alô , alô , Terezinha – Rio de Janeiro / Alô , alô , seu Chacrinha – velho palhaço / Alô , alô , Terezinha – aquele abraço ! / |
Alô , moça da favela – aquele abraço !/ Todo mundo da Portela – aquele abraço ! / Todo mês de fevereiro – aquele passo ! / Alô Banda de Ipanema – aquele abraço ! / Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço / A Bahia já me deu régua e compasso / Quem sabe de mim sou eu – aquele abraço ! / Pra você que me esqueceu – aquele abraço ! / Alô Rio de Janeiro – aquele abraço ! / Todo o povo brasileiro – aquele abraço ! / “ ] . No ano de 1964 , iniciando praticamente sua carreira , em um período anterior ao tropicalismo , Gilberto Gil traz uma determinada carga ideológica alinhada a uma interpretação política da religião , mostrando uma relação estreita existente entre a literatura e a religiosidade , causadora da cegueira política do homem nordestino , materializada no poema musical
“ PROCISSÃO . [ “ / Olha lá vai passando a procissão / Arrastando que nem cobra pelo chão / As pessoas que nela vão passando / Acreditam nas coisas lá do céu / As mulheres cantando tiram o versos / Os homens escutando tiram o chapéu / Eles vivem penando aqui na terra / Esperando o que Jesus prometeu / E Jesus prometeu vida melhor / Pra quem vive nesse mundo sem amor / Só depois de entregar o corpo ao chão / Só depois de morrer neste sertão / Eu também to do lado de Jesus / |
Só que eu acho que ele se esqueceu / De dizer que na terra a gente tem / De arranjar um jeitinho pra viver / Muita gente se arvora a ser Deus / E promete tanta coisa pro sertão / Que vai dar um vestido pra Maria / E promete um roçado pro João / Entra ano , sai ano , nada vem / Meu sertão continua ao deus-dará / Mas existe Jesus no firmamento / Cá na terra isto tem que se acabar / . “ ] . Esta bela canção expressa um drama cujos personagens são dois trabalhadores : um do comércio popular , feirante , e o outro operário de uma construção civil que se encantam pela mesma mulher . Um crime passional é o eixo semântico da tragédia musical dramatizada em dia e lugar de diversão : “ DOMINGO NO PARQUE “.
[ “ / O rei da brincadeira / Ê , José ! / O rei da confusão / Ê , João ! / Um trabalhava na feira / Ê , José ! / O outro na construção / Ê , João ! / A semana passada / No fim da semana / João resolveu não brigar / No domingo de tarde / Saiu apressado / E não foi pra Ribeira jogar / Capoeira ! / Não foi pra lá / Pra Ribeira , foi namorar... / O José como sempre / No fim da semana / Guardou a barraca e sumiu / Foi fazer no domingo / Um passeio no parque / Lá perto da boca do Rio ... / |
Foi no parque / Que ele avistou / Juliana / Foi que ele viu / Foi que ele viu Juliana na roda com João / Uma rosa e um sorvete na mão / Juliana seu sonho , ilusão / Juliana e o amigo João .../ O espinho da rosa feriu Zé / ( Feriu Zé ) ( Feriu Zé ) / E o sorvete gelou seu coração / O sorvete e a rosa / Ô , José ! / A rosa e o sorvete / Ô , José ! / Foi dançando no peito / Ô , José ! / Do José brincalhão / Ô , José ! / Juliana girando / Oi girando ! / Oi , na roda gigante / Oi girando ! / Oi , na roda gigante / Oi girando ! O amigo João ( João )... / O sorvete é morango / É vermelho ! / Oi, girando e a rosa / É vermelha ! / Oi girando , girando / É vermelha! / Oi girando , girando / Oi girando , girando / Olha a faca ! ( Olha a faca ! ) / Olha o sangue na mão / Ê , José ! / Juliana no chão /Ê , José ! / Outro corpo caído / Ê , José ! / Seu amigo João / Ê , José ! / Amanhã não tem feira / Ê , José ! / Não tem mais construção / Ê , José ! / Não tem mais brincadeira / Ê, José ! / Não tem mais confusão / Ê , João ...! / Êh. Êh , êh , êh ...............êh , êh / . “ ] . Em um magistral e corajoso depoimento poético , Gil compôs uma linda canção modificando completamente a concepção diante da vida que privilegia os homens e exaltando os valores femininos como prioridade artística , neutralizando o poder masculino do “ SUPER-HOMEM , A CANÇÃO “
[ “ / Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria / Que o mundo masculino tudo me daria / Do que eu quisesse ter / Que nada , minha porção mulher que até então se / Resguardara / É a porção que trago em mim agora / E o que me faz viver / Quem dera pudesse todo homem compreender , ó mãe / Quem dera / Ser o verão no apogeu da primavera / E só por ela ser / Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória / Mudando como Deus o curso da história / Por causa da mulher / |
( BIS ) / . “ ] . Em um raciocínio poético sobre uma grande transformação do amor , Gil , com uma sutileza criativa , expressa nesta canção uma história de separação que se efetiva com a sua terceira esposa cujo nome era Sandra , com quem fora casado 17 anos , e que desde menina sustentava o apelido de Sandrão , simplificando afetivamente a expressão mais tarde em “ DRÃO “ .
[ “ / Drão , / O amor da gente é como um grão , / Uma semente de ilusão , Tem que morrer pra germinar , / Plantar nalgum lugar , / Ressuscitar no chão / Nossa semeadura ! / Quem poderá fazer / Aquele amor morrer ? / Nossa caminha dura ! / Dura caminhada / Pela estrada escura . / Drão , / Não pense na separação , / Não despedace o coração , / O verdadeiro amor é vão , / Estende-se , infinito , / Imenso monólito , / Nossa arquitetura . / Quem poderá fazer / Aquele amor morrer ? / |
Nossa caminha dura ! / Cama de tatame / Pela vida afora .../ Drão , / Os meninos são todos sãos , / Os pecados são todos meus , / Deus sabe a minha confissão , / Não há o que perdoar / Por isso mesmo é que há / De haver mais compaixão ! / Quem poderá fazer / Aquele amor morrer , / Se o amor é como um grão : / Morre , nasce trigo , / Vive , e morre pão ! / Drão ! / Drão ! “ . ] .
Em uma grande expectativa para encontrar Deus numa concepção diferente daquela que comumente costumam descrever , mas um Deus que está acima de todas as coisas e que já tinha conhecimento , Gil , no decorrer da canção , demonstra a trajetória angustiante que passa para entender esse Deus . Diante da busca e do entendimento de uma nova percepção de fé , declara : “ SE EU QUISER FALAR COM DEUS “ .
[ “ / Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós / Tenho que apagar a luz / Tenho que calar a voz / Tenho que encontrar a paz / Tenho que folgar os nós / Dos sapatos , da gravata / Dos desejos , dos receios / Tenho que esquecer a data / Tenho que perder a conta / Tenho que ter mãos vazias / Ter a alma e o corpo nus / Se eu quiser falar com Deus / Tenho que aceitar a dor / Tenho que comer o pão / Que o diabo amassou / Tenho que virar um cão / Tenho que lamber o chão / |
Dos palácios , dos castelos / Suntuosos do meu sonho / Tenho que me ver tristonho / Tenho que me achar medonho / E apesar de um mal tamanho / Alegrar meu coração / Se eu quiser falar com Deus / Tenho que me aventurar / Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar / Tenho que dizer adeus / Dar as costas , caminhar / Decidido pela estrada / Que ao findar vai dar em nada / Nada, nada, nada , nada / Nada , nada , nada , nada / Nada , nada , nada , nada / Do que eu pensava encontrar / . “ ] .
A linha de raciocínio desta música dá-nos a ideia de um quadro deprimente vivido durante a Regime Militar no Brasil , representando um lamento familiar por aqueles que sumiram sem deixar pista. Ainda faz alusão às perseguições , às torturas e ao desaparecimento de pessoas que resistiam à opressão do sistema político vigente . Gilberto Gil , em uma maravilhosa versão para “ NO WOMAN , NO CRY “ do jamaicano BOB MARLEY , edifica uma crítica à Ditadura Militar , dentro de um inteligente jogo metafórico , deixando na mensagem a esperança de um futuro melhor para o País , daí o pedido de “ NÃO CHORE MAIS “ .
[ “ / No Woman , Cry ( 4 X ) / Bem que eu me lembro / Da gente sentado ali / Na grama do aterro , sob o sol / Ob-observando hipócritas / Disfarçados , rondando ao redor ... / Amigos presos / Amigos sumindo assim / Pra nunca mais / Tais recordações / Retratos do mal em si / Melhor é deixar pra trás ... / Não , não chore mais / Não , não chore mais / Oh ! oh ! / Não , não chore mais / Oh ! oh! oh! oh! oh! / Não , chore mais / Hê ! Hê ! ... / Bem que eu me lembro / Da gente sentava ali / |
Na grama do aterro , sob o céu / Ob-observando estrelas / Junto à fogueirinha de papel ... / Quentar o frio / Requentar o pão / E comer com você / Os pés , de manhã , pisar o chão / Eu sei a barra de viver ... / Mas , se Deus quiser ! / Tudo , tudo , tudo vai dar pé ( 6 X ) / No , Woman , Cry ( 3 X ) / Não , não chore mais / Menina, não chore assim ! / Não, não chore mais / Oh! Oh! Oh! / No Woman , Cry / No Woman , Cry / Não , não chore mais / Não chore assim / Não , não chore mais / Hê ! Hê ! / “ . ] . Para demonstrar uma desigualdade social , Gil compõe uma linda canção , simbolizando a disputa das partes de uma sereia . De um lado , pelo poeta na descrição lírica do belo; e do outro lado , o faminto querendo despedaçar o rabo para saciar sua fome . Maravilhoso jogo comparativo criado pela genialidade poética do Autor é “ A NOVIDADE “ .
[ “ / Uh! Heiê ! Oh ! / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô ! / Ah! Aaaah ! / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô / Ah! Aaaah ! Heiê ! heiê ! / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô / Ah ! Aaaah ! / A novidade veio dar à praia / Na qualidade rara de sereia / Metade o busto / D’uma deusa Maia / Metade um grande / Rabo de sereia ... / A novidade era o máximo / Do paradoxo / Estendido na areia / Alguns a desejar / Seus beijos de deusa / Outros a desejar / Seu rabo pra ceia ... / Oh ! Mundo tão desigual / Tudo é tão desigual / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô / Oh ! De um lado esse carnaval / |
De outro a fome total / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô / Ah ! Aaaah ! / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô / Ah ! Aaaah ! / E a novidade que seria um sonho / O milagre risonho da sereia / Virava um pesadelo tão medonho / Ali naquela praia / Ali na areia / A novidade era a guerra / Entre o feliz poeta / E o esfomeado / Estraçalhando / Uma sereia bonita / Despedaçando o sonho / Pra cada lado ... / Oh ! Mundo tão desigual / Tudo é tão desigual / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô / Oh ! De um lado esse carnaval / De outro a fome total / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô ... ! / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô ! / Ah ! Aaaah ! / Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô ! / Ah ! Aaaah ! Ah ! Aaaah ! ( 3 X ) / . “ ] . Gilberto Gil , nesta canção , expõe, poeticamente , um dilema vivenciado pela rotina dos casais e uma saída para o problema rotineiro , buscando a liberdade prazerosa com a companheira em lugares atraentes e sonhados . Para descobrir esse Eldorado , é necessário que se faça um convite à amada : “ VAMOS FUGIR “ .
[ “ / Vamos fugir / Deste lugar , baby / Vamos fugir / Tô cansado de esperar / Que você me carregue / Vamos fugir / Proutro lugar , baby / Vamos fugir / Pronde quer que você vá / Que você me carregue / Pois diga que irá / Irajá , Irajá / Pronde eu só veja você / Você veja a mim só / Marajó , Marajó / Qualquer outro lugar comum / Outro lugar qualquer / Guaporé , Guaporé / Qualquer outro lugar ao sol / Outro lugar ao sul / Céu azul , céu azul / Onde haja só meu corpo nu / Junto ao seu corpo nu / |
Vamos fugir / Proutro lugar , baby / Vamos fugir / Pronde haja um tobogã / Onde a gente escorregue / Todo dia de manhã / Flores que a gente regue / Uma banda de maçã / Outra banda de reggae / . “ ] . Há uma proposta enigmática nesta canção que estabelece duas vertentes para leitura : a textual em que realça a natureza das coisas tendo o abacateiro como referencial de uma expectativa para solução de várias situações complicadas ; a outra leitura manifesta-se no metatexto que é interpretação que não está presente no texto , porém , induzido por ele , acarreta situações simbólicas dentro da poesia , permitindo visões de significados diferentes que se encontram reestruturados em “ REFAZENDA “ .
[ “ / Abacateiro , acataremos teu ato / Nós também somos do mato como o pato e o leão / Aguardaremos brincaremos no regato / Até que nos tragam frutos do teu amor , teu coração / Abacateiro , teu recolhimento é justamente / O significado da palavra temporão / Enquanto o tempo não trouxer teu abacate / Amanhecerá tomate anoitecerá mamão / Abacateiro , sabes ao que estou me referindo / Porque todo tamarindo tem seu agosto azedo / Cedo , antes que o janeiro doce manga venha ser também / |
Abacateiro , serás meu parceiro solitário / Nesse itinerário da leveza pelo ar / Abacateiro , saiba que na refazenda / Tu me ensinas fazer renda que eu te ensino a namorar / Refazendo tudo / Refazenda / Refazenda toda / Guariroba . / “ ] . Para encerramento desta pequena triagem feita na bela trajetória musical composta por Gilberto Gil , apresentaremos uma canção deliciosamente lúdica que expressa um tema infantil , sucesso de uma trilha sonora , abertura de um programa de televisão , que perpetuou , musicalmente , na memória de todas as crianças de oito a oitenta anos : “ SÍTIO DO PICA-PAU AMARELO “ .
[ “ / Marmelada de banana / Bananada de goiaba / Goiabada de marmelo / Sítio do Pica-pau Amarelo (bis) / Boneca de pano é gente / Sabugo de milho é gente / O sol nascente é tão belo / Sítio do Pica-pau Amarelo (bis) / Rio de preta piratas / Voo sideral na mata / Universo paralelo / Sítio do Pica-pau Amarelo (bis) / No país da fantasia / Num estado de euforia / Cidade polichinelo / Sítio do Pica-pau Amarelo (bis) / . “ ] . |
Diante de um vasto repertório de belas canções , O CANTINHO MUSICAL teve um imenso cuidado na seleção de algumas joias musicais que se identificam com a competência desse genial compositor para minuciosa apreciação de pessoas que curtem uma boa música . O veio poético , expresso nas obras de Gilberto Gil , comprova a genialidade literária e a facilidade como ele joga com as palavras , obrigando , não só a leitura expostas no texto , mas também a busca dos sentidos míticos nas entrelinhas de suas poesias .
“ A ESSÊNCIA DE UMA BOA MÚSICA ENCONTRA-SE EM SUA POESIA ENCANTADORA , INCORPORADA A UMA LINHA MELÓDICA QUE SUSTENTA O SUCESSO DE UMA CANÇÃO. GILBERTO GIL CONSEGUE COADUNAR , MAGISTRALMENTE , A BELEZA DE SUAS LETRAS COM A CADÊNCIA MARAVILHOSA EM SUAS CRIAÇÕES MUSICAIS “
Waldemar Pedro Antonio
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