04/12/2015 às 08h47min - Atualizada em 04/12/2015 às 08h47min

Ataques em Paris

O pai, preguiçoso malandrão, era ainda alcoólatra inveterado e a mãe era “mulher vadia”. Ah, um casal assim, ao gerar gêmeos, só poderia oferecer ao mundo dois monstrinhos. Na realidade, a primeira frase é ficção. Os pais de minha narrativa eram pessoas boas, mas o casamento deles não deu certo.  A mãe se foi com outro homem e ele não aceitou criar filhos alheios. Ao pai, caixeiro-viajante (termo da época), não restou caminho outro que pedir à avó paterna das crianças que as abrigasse.  Esta, contudo, ao invés de acolhê-los com dignidade, era useira e vezeira em chamá-los bastardos, que com certeza não eram.

Então, no mundo ficaram “jogadas” duas crianças, aqui nominadas Péricles e Adelita.  Esta zanzava de casa em casa de solidários parentes paternos; Péricles foi para o Rio, teoricamente morando com a avó paterna, mas na realidade entregue à sorte, com inadequada liberdade plena de ir e vir. Enquanto isto, o pai trabalhava, ficando às vezes longo tempo sem se mostrar presente.

Adelita cresceu, fez-se moça formosa, casou-se, teve filhos e seu casamento sucumbiu quando forças físicas começaram a lhe faltar de tanto lavar diariamente não somente o enorme canil, mas também os muitos cães de pelagem longa que o marido mantinha.  Com pensão do marido e com complementar trabalho honesto, criou os filhos, que “deram certo na vida”.
Esporadicamente, Péricles passava por Leopoldina, chegava até minha casa, pois afinal era meu enorme amiguinho de infância, que muito me amava e eu o amava.  Eu, sem saber de seus erros, vez ou outra comentava sobre a diversidade de seus belos automóveis e ele simplificava “tudo emprestado por amigos”.

De uma feita, na zona sul do Rio de Janeiro, ofereceram ao Péricles gorjetas para observar o trânsito e descobrir gente distraída que deixava, por comodidade ou desleixo, as chaves de seus veículos na ignição. Pouco a pouco, inteligente, passou de olheiro a executor de pequenos furtos. Dos pequenos, passou aos grandes, mancomunou-se com gente experiente e até bancos assaltou.

De repente, o Péricles sumiu de minha convivência. Questionadas, Adelita e uma tia paterna diziam “foi morar com a mãe e perdemos contato com ele”. A história a mim contada por ele é que, realizado financeiramente, rompera com os amigos cariocas do crime, comprara um restaurante na capital de São Paulo e não mais furtava. Um falecido delegado, de prestígio nacional, cujo nome me causa ojeriza apesar de ele já ter falecido, teve notícias dele. E foi a seu encalço. Ao invés de simplesmente detê-lo, tomou-lhe o restaurante e todo o dinheiro que possuía, quase tudo ganho honestamente no restaurante.  E só então, com manchetes jornalísticas, o até hoje enaltecido policial o entregou à Justiça.

Péricles “pegou” 23 anos de cadeia, lá dentro, com todo tipo de apoio da irmã Adelita, estudou, passou no vestibular de Engenharia, mas o Dr. Francisco Horta, que foi antes ou depois até presidente do Fluminense Futebol Clube, negou-lhe o direito de frequentar faculdade.  Na ocasião, o Jornal dos Esportes publicou longa reportagem sobre o fato.
Ao saber que ele não estava com a mãe, mas preso, visitei-o com a frequência que minha vida em Leopoldina permitia. Valéria ainda hoje se diz “admirada” de eu tê-la levado comigo para algumas visitas, quando ela era criança, criancinha mesmo. 

No presídio, numa tarde de muita tristeza para mim, Péricles detalhou-me suas atividades criminosas e, quando o censurei com descontrolada veemência, dizendo-lhe da minha vida de total honestidade, ele me disse “você teve seus pais perfeitos; eu não tive mãe presente, meu pai não ficava comigo e minha avó vivia me dizendo que eu não era neto dela”. Revejo-o agora, a me dizer, com ar de extrema felicidade, “Nelsinho, fiz muita coisa errada, mas nunca matei ninguém, nem mesmo feri ninguém”. Abraçamo-nos emocionados, como se tal confissão o redimisse de tantos erros cometidos.
Enquanto preso, recebeu visita da mãe em todos os domingos. Uma tia paterna juntava com dificuldade um dinheirinho e, levando guloseimas, ia vê-lo quando surgia uma oportunidade. A irmã Adelita, sempre amorosa, lhe dava toda a assistência sentimental e material possível.

Apesar do excelente procedimento, inclusive dando aula de matemática, física e química para dezenas de detentos, a Péricles, talvez por influência do delegado que o prendeu e furtou, não foi dado um dia sequer de benefício penal. Cumpriu toda sua pena e, no dia de sua libertação, Calé e eu fomos esperá-lo, levando-o a um bom restaurante. Não canso de me recriminar porque, com máquina fotográfica a tiracolo, não me lembrei de nos fotografar juntos, felizes, felicíssimos. Durante o jantar, disse-me que jamais voltaria a delinquir. Quis trazê-lo para minha casa, mas ponderações abortaram meu desejo.

Poucos meses depois, Adelita deu-me a indesejada notícia: Péricles, irmão dela e meu primo por afeição, havia sido assassinado por desacerto numa partilha de furto de pequena quantia de dinheiro.

Perdeu-se uma foto quando ele me entregava de presente uma bola de couro quando tínhamos no máximo 8 aninhos. Guardo com carinho fotos dele, de primeira comunhão inclusive.

A família e amigos de Péricles, à unanimidade, tentaram salvá-lo. Conto a história ao compará-la com a atitude de um islamita que, contra a expressa vontade do pai, ao invés de procurar proteger um irmãozinho de apenas 13 anos de idade, preferiu cooptá-lo e levá-lo, depois de tê-lo doutrinado, a se explodir nos recentes ataques em Paris, acreditando que, ao morrer como homem-bomba, ganharia 72 virgens.
Em 17.12.2015 Nelsinho.
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