19/01/2016 às 08h46min - Atualizada em 19/01/2016 às 08h46min

Ataulfo e eu

Nelson Vieira Filho escreve sobre momentos com Ataulfo Alves

Quando li um meticuloso trabalho do musicólogo Waldemar Pedro Antônio em seu Cantinho Musical, duas saborosas lembranças me acorreram. A primeira, de minha boa convivência com o hoje paulista Palimércio Montes; outra, de que em meu vetusto baú havia, anotados há anos, vários tópicos, reminiscências dos encontros e desencontros meus com o Ataulfo Alves, o enorme compositor brasileiro.
 
Ignorando leis e costumes, minha querida Miraí, com o homenageado ainda vivo, mudou de Rua do Rosário para Rua Ataulfo Alves o nome do logradouro onde ele viveu durante um pequeno pedaço de sua vida.
 
Regida pelo insuperável maestro Pascoal Garcia, tendo como “tocador de prato” nosso sempre lembrado Padre Ernesto Tancredo, a Banda Santa Cecília se encarregou da alegre alvorada, percorrendo praticamente toda a cidade.  Incentivado, o povo miraiense, procurando vestir-se com seus melhores trajes, quase que à unanimidade, compareceu à cerimônia.
 
A festança culminou com um show em que se apresentaram, além de Ataulfo, uma plêiade de amigos dele, uns convidados, outros oferecidos, mas todos artistas de destaque no cenário musical carioca, quiçá nacional.
 
Meu querido pai, lisonjeado, recebeu a incumbência de fazer a saudação oficial ao homenageado, quando se estendeu em merecidas loas a Ataulfo.
 
Ataulfo, cavalheiro, foi no dia seguinte a nossa casa agradecer a manifestação verbal de papai. Almoçou. Ali, depois de elogiar os ovos nevados, sobremesa em que minha mãe era especialista inigualável,Ataulfo se disse sem pressa e ficou batendo longo papo com papai. No bojo da conversa, a informação de que eu, único filho varão de meus pais, era estudante universitário no Rio de Janeiro. Ataulfo, que comparecia com frequência a clubes para animar bailes, sugeriu que eu o procurasse para ir, como convidado dele, dançar e “comer e beber do bom e do melhor” nos shows em que era o protagonista em terras cariocas.
 
Daí em diante, algumas vezes, eu, acompanhado de amigos ou de alguma namoradinha, era componente do grupo de pessoas que ocupavam duas, três ou até quatro mesas que Ataulfo requisitava para suas apresentações.  
 
Surgiu entre nós não uma amizade íntima, mas uma belíssima camaradagem. Eu ficava boquiaberto ao receber telefonemas pessoais do Ataulfo para me comunicar, com boa antecedência, tudo sobre o que eu deveria fazer para comparecer a seus shows e desfrutar de tantas mordomias.
 
Ataulfo, além da residência oficial, em distante subúrbio carioca, ocupava também um minúsculo apErtamento num prédio na confluência das ruas Augusto Severo e Lapa, no bairro da Glória, pertinho da Rua Hermenegildo de Barros,onde eu morava. Tal proximidade nos permitia encontros frequentes, quase sempre ao sabor do acaso. Em amistoso papo informal, perguntei a ele de onde saíra a antológica frase que encerra a magistral Tempos de Criança e ele, num olhar em que se misturavam alegria infantil e tristeza profunda, foi lacônico: “nasceu de uma saudade eterna de Miraí, saudade que não me abandona o coração”. Realmente, quanta música já se fez no mundo todo e só ele, o insuperável Ataulfo, foi capaz de destacar "eu era feliz e não sabia”.
 
Sempre cortês, Ataulfo topava conversa sempre. 
 
Ele era um fumante inveterado e, de uma feita, eu, aborrecido com o nojento cheiro de seu fedorento cigarro, contei-lhe que, quando estudante em Leopoldina, dei muito tapa para tirar da boca do amigo Roberto Ladeira Fontes o cigarro que era aceso perto de mim. Ataulfo foi incisivo “ainda está para nascer o homem capaz de me dar um tapa na boca”.
 
Ataulfo nunca escondeu seu pendor para a bebida alcoólica. Bebia de tudo socialmente, mas seu prazer era ingerir a legítima cachaça brasileira. Dela levou uma quantidade considerada suficiente para consumo pessoal quando foi contratado para uma turnê na Alemanha. Com invejável capacidade para a convivência social, ofereceu uma dosinha para um alemão a quem havia sido apresentado na coxia do teatro. O gesto, aparentemente simples, foi o fato gerador de um problemaço.  O alemão levou amigos e os amigos levaram mais amigos para provar a bebida brasileira que o Ataulfo colocara em sua bagagem. Em tempo recorde, a pinga acabou e, com o fim dela, automaticamente surgiu o fim do entusiasmo dele pela atividade profissional. Folclore ou não, sempre se disse que, sentindo falta da bebida, decidiu rescindir imediatamente o contrato e retornar ao Brasil. 
 
Comentei com ele como arranjara tempo para fazer mais de duzentas boas canções e ele me disse “o Pelé faz muitos gols, o Sr. Afonso Pereira ganha muito dinheiro e eu faço músicas, pois vivemos 24 horas por dia nos preparando para tal missão, pois nós só cuidamos disto”.
 
Fofocando, comentei com ele sobre um propalado romance entre a badalada apresentadora Neide Aparecida com um senhor da alta sociedade leopoldinense. Ele me disse que não conhecia a Neide Aparecida, mas que estava sendo perseguido por uma mineirinha faceira, muito jeitosa, que queria músicas para gravar. Ele acabou por encaminhá-la a quem tinha condições de ajudá-la, ela fez muito sucesso, mas, vaidosa,infelizmente, decidiu se submeter auma desnecessária cirurgia plástica e assim o Brasil perdeu precocemente a talentosa Clara Nunes.
 
Vaidoso, ficou feliz quando o colunista social Ibrahim Sued ocolocou na lista dos 10 homens mais elegantes do Brasil. Li, não sei onde, que Ataulfo comentara com alguém que, na ocasião, possuía um único terno, que usava em todas as ocasiões que lhe exigissem tal indumentária. E que, depois disto, passou a ter muitos ternos, pois os alfaiates o procuravam, oferecendo não apenas o serviço grátis, mas também o presenteavam com o tecido.
 
Ficou extremamente exultante quando foitema da Escola de Samba “Rosa de Ouro” em São Paulo e eu nunca o vi tão feliz como no momento em que a Escola foi sagrada campeã.
 
Carlos Imperial manobrou e fez sucesso com música do Ataulfo. Chamou a imprensa e o Ataulfo. Disse “quero ver se ele é mesmo bamba”. Fiz a primeira parte e quero ver se ele faz a segunda. Só que a primeira já era de Ataulfo, que “fez” a segunda. De uma feita, num show de auditório em TV, o animador disse que a música seria apresentada. Chamou Imperial, que foi vaiado. Quando chamou Ataulfo, as vaias cessaram e ele foi aplaudido de pé.
 
Eu estava casadinho de novo, recém-chegado a Leopoldina, quando fui procurado por um cidadão que eu jamais havia visto. Ele se identificou como Waldyr, marido da Maria Célia, irmã do Luiz Fernando “Linguiça”, meu contemporâneo de Colégio Leopoldinense. Recebi-o em minha casa e ele falou “fiquei sabendo que o senhor tem bom conhecimento com o Ataulfo Alves, seu conterrâneo de Mirai”. Confirmada a informação, o Waldyr “Gomes” Costa me pediu contatar o Ataulfo para ver em que condições ele poderia ir até Recreio e fazer um show beneficente, sem esclarecer o favorecido. Telefonei para o Ataulfo, falei na benemerência do show e ele, prontificando-se a reservar data em sua então recheada agenda,decretou “traga o pessoal ao Rio, pois isso não é assunto para discutir por telefone”.
 
Num fusquinha bem rodado, dirigido pelo Dr. Geraldo Damasceno de Almeida (Chumbinho), em companhia da Maria Teresa Amin(amiga de minha irmãLúcia) e de outra moça (Sônia Vieira), fomos ao Rio. Sem entendimento prévio, chegamos até o longínquo bairro suburbano Piedade, onde moravam o Ataulfo, sua esposa dona Judite e uma das filhas.  Era tarde da noite e ele não estava. Só o achei na manhã seguinte, quando marcamos encontro para ocorrer durante um almoço, na Cinelândia. Tudo ficou acertado e, questionado sobre o custo de seu show, Ataulfo superou minha expectativa ao dizer para todos ouvirem“se o Nelsinho está pedindo para obra de benemerência, o custo será zero”. Temendo umadesistência do Ataulfo, omiti que o show era em benefício, mas em benefício de um time de futebol.
 
Ataulfo chegou de trem da Estrada de Ferro Leopoldina, perguntei-lhe se queria “seguranças” e ele simplificou “deixe-me nos braços do povo, pois eu sou do povo”. E nos braços de recreenses entusiasmados, ele ficou.
 
Fomos nos alimentar e nunca consegui sequer ver as fotos em que eu e Calé fomos flagrados ao lado do Ataulfo. Sobrava gentena Associação Comercial quando Ataulfo começou a cantar. Quase que na primeira estrofe da primeira música, ele mandou a orquestra parar e sentenciou “não sou crooner, parem de dançar senão eu paro de cantar”.
 
No intervalo do show, vi quando alguém se debruçousobre a mesa onde estavao Ataulfo e entornou o copo de cerveja que ele degustava. Anos se passaram até eu saber que o autor da travessura havia sido o Luiz Heleno Gesualdi Reiff, depois meu companheiro de Lions Clube. Segundos depois da “queda do copo”, a Calé comentou comigo “o Ataulfo passou aqui pisando duro e saiu do recinto”. Fui ao encontro dele, que me disse com voz alterada “você me abandonou, chegaram à minha mesa e entornaram cerveja em meu terno. Vou embora”. Dei-lhe o troco “vai embora como, se não tem condução? E você dispensou a segurança que lhe ofereci”.
 
Não voltou para a parte restante do show, quando iria me chamar ao palco, me apresentar como advogado recentemente chegado a Leopoldina e, por ideia exclusivamente dele comentada comigo, fazer assim um excelente comercial meu. Para o Ataulfo ser acalmado,o Jadir Lacerda, filho do Sr. José Lacerda e da dona Conceição,levou-o para comer um cabrito em sua casa em companhia de alguns recreenses. E eu vim com Calé para nossa casa.Recentemente soube que oAtaulfo perdeu o “expresso da noite”, ficou se divertindo em Recreio por mais dois dias e inclusive, no último jantar, dispensou lagosta e camarão que a Maria Célia preparara e pediu para comer o que sobrara do almoço (frango com quiabo e angu). Deram-lhe um fogo (e olha que o Ataulfoera "cachacista juramentado"), colocaram-no no trem da Leopoldina para o Rio, com enorme carregamento de queijos, cachaça, linguiça. Em sua companhia, retornou o amigo que com ele viera, possivelmente o autor da música Cantareira. Depois, Ataulfo me disse que ficou encantado com o tratamento recebido em Recreio e me agradeceu.Penso que ele nunca soube que o tal show beneficente era para favorecer um time de futebol, o Esporte Clube Recreio, não uma entidade caritativa.  
 
            Ele teve câncer e estava internado na Casa de Saúde São Sebastião, na Rua Bento Lisboa, no Catete. Saí de Leopoldinae fui ao Rio com a finalidade precípua de visitá-lo. Fazia muito calor, fui de bermuda e não me deixaram entrar no quarto. De longe, ele me viu, chamou-me, contei-lhe sobre a bermuda e falei que trocaria de roupa e voltaria. Quando me afastava, pareceu-me ter ouvidogritar "Ô Nelsinho, volte mesmo".  Havia, porém, um jogo Flamengo x Botafogo no Maracanã e decidi ir lá para somente depois visitar o Ataulfo. No intervalo do jogo, o som do Maracanã informou "acaba de falecer o cantor e compositor Ataulfo Alves".  
Papai, por telefone, me disse que o Prefeito de Miraí pedira para eu agir e levar o corpo para Miraí, com todas as despesas por conta da municipalidade.  Bem cedinho, na manhã seguinte, cheguei a um filho dele (Ataulfinho ou Adeilton) e fiz a proposta, que foi recusada com a frase “de jeito nenhum, papai não gostava de lá".  Aí, meu sangue espanhol ferveu, e eu, irado, disse "como não gostava, se fez algumas músicas para Miraí e a qualquer folguinha ir para lá e ficava dias e dias?”.
Saí do velório, vim embora. 
 
            Depois, não muito depois, no centenário de nascimento dele, os restos mortais foram levados para Miraí, onde estão em jazigo especial, na parte externa do cemitério, onde foram sepultados papai, mamãe, minha irmã Lelé, meus avós maternos e três de meus amados tios maternos.
Há, também, um busto dele numa praça, com uma quadrinha de uma de suas sentimentais canções:
 
"Perguntam por que sou triste
Nos versos que já escrevi,
Sou triste porque cantando
Não posso esquecer de ti, Miraí.".
 
Em 30.12.2015
Nelsinho.
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