18/05/2014 às 17h18min - Atualizada em 18/05/2014 às 17h18min

DESENGANO

DESENGANO

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É engraçado o nome desse bairro, pensa o jovem curioso, e repete para si em palavras silenciosas o que somente sua alma ouve. E continua assim introspectivo e, completamente tomado pela leitura da reportagem que saíra num jornal de sua cidade. Ao lê-la, sem fotos, imaginou como seria aquele bairro, pela rica descrição que fizera o autor da matéria. Ela destacava a beleza dos jardins e das residências do lugar. Mas, ele estava muito curioso, pois o nome do bairro era Desengano. Por que esse nome? Desengano lembra-lhe dor. Tristeza de amor. Será?

E o jovem enfeitiçado pelo nome cheio desse adjetivo tão forte, foi até lá. De origem humilde, jamais poderia imaginar tanta riqueza. Mansões de janelas que pareciam portas, varandas do tamanho de casas, jardins cheios de flores que davam ao ar a mistura de suas fragrâncias. Também pôde notar um sem número de pássaros e árvores frutíferas. Aliás, ele percebeu que havia muitos frutos maduros nos pés e caídos pelo chão.

“Ah! Como seria bom se eu morasse aqui! Por que um lugar tão bonito tem um nome tão triste?”

Mas ele coberto pelo sentimento forte do adjetivo que o levara a ir até lá, voltou-se para seu objetivo. A rua em que estava terminava em uma estreita estrada de chão. À direita, um sem fim de árvores frutíferas: mangueiras, bananeiras, laranjeiras, goiabeiras, jaqueiras...

“Meu Deus, se eu morasse por aqui, estaria feito! Que Desengano qual nada; aqui para mim é o paraíso!”

À esquerda, viu uma porteira, aproximou-se, subiu nela. Seus olhos brilharam, pois lá no fundo pôde notar as paredes brancas de uma mansão. Além da porteira, um caminho calçado e muito bem cuidado, visto que seus dois lados eram delineados por plantas diversas e floridas. A mansão de dois andares tinha varandas nos seus dois pisos: nas laterais e na sua frente. Muitas janelas e portas se destacavam nos dois pavimentos, tudo impecavelmente branco. Pensou:

“Gente rica, muito rica!”

O dia já ia morrendo para deixar nascer a noite, e ele precisava voltar para sua casa. Sabia que ao se atrasar deixaria sua mãe preocupada. Mas, como que num passe de mágica, viu as janelas serem abertas e as luzes da mansão serem acesas, uma a uma. A iluminação das varandas superiores foi clareando as beiradas das árvores mais próximas. Mais belo ainda, foi quando de repente ele viu brilhar lá dentro, através da porta principal do segundo andar, dependurado no alto do teto da mansão, um lustre imenso, como se fora feito de pedras de diamante.

Depois foi a vez do primeiro andar: imitando o segundo cobriu-se de luz. Agora, aquela mansão estava completamente iluminada, e o jovem totalmente envolvido pela cena tão bela. Daí a pouco, embevecido por tanta beleza, assustou-se, pois fora surpreendido pela voz de um homem:

“Por favor, desça daí, meu jovem!”

Ele era bem educado, foi logo descendo e lhe pedindo desculpas. E o homem desconfiado, argumentou:

“Nunca o vi por aqui antes. O que o atrai tanto neste lugar?”

Ainda se refazendo do susto por ter sido pego de surpresa, o jovem lhe responde:

“Não quero nada, meu senhor. Desculpe-me, eu só estava apreciando a sua mansão.”

Aquele homem chegara para mais perto dele. E assim, pôde ver que ele estava bem vestido. Aliás, ele já vira a figura de Getúlio Vargas vestido tal qual aquele senhor, num quadro próximo ao rádio, ambos presos na parede da pequena sala de sua casa. Getúlio foi o herói de seu pai, e ele mantinha aquele quadro para homenageá-lo. Nele, o ex-presidente usa um fraque.

Imediatamente pensou em sair dali, pois provavelmente aquele homem era o rico senhor, dono de tudo aquilo. O homem não era nada disso. Muito educado, convidou-o a entrar, dizendo-lhe:

“Fique tranquilo, sei que você acredita que eu seja muito rico, pois ao ver-me assim trajado, certamente está pensando que sou o dono de tudo isso. Mas não sou. Quer que eu lhe conte a verdade que guardo comigo? Nunca antes contei-a a ninguém, e provavelmente morrerei assim, com este meu segredo, pois jamais veio por aqui  alguém que quisesse ouvir-me. E então, você quer saber de toda a verdade que cobre este lugar?”

“Sim, diga-me: por que esse paraíso é chamado de Desengano?”

“Por favor, entre meu jovem, a história é longa e vou lhe contar.”

E o jovem entrou, acomodaram-se no sofá da sala. E ele temeroso, perguntou-lhe se não haveria algum problema se o encontrassem ali. Ele disse ao jovem que ficasse tranquilo, pois desde a morte de Gabriela, seus filhos não mais retornaram.  

E, como quem entrara em um transe, ele iniciou sua narrativa:

“Aqui, há mais de quarenta anos, houve uma festa para celebrar o casamento da jovem Gabriela de Sá Carvalho, filha única de Arquimedes de Sá Carvalho e Dorothéia Hernandes Carvalho. Ela se casara com Bartolomeu Buenno Ribeiro, filho de Pedro Cavalcanti Ribeiro com Antonieta Augusta Ribeiro. Vejo agora como se fosse ontem, por aquelas portas abertas, entrando de mãos dadas os felizes noivos. Ela estava linda como uma princesa. A segui-los, seus pais e os padrinhos. A partir daí, entraram os convidados. Lá fora, carros chegando e saindo, trazendo a todos para o grande baile. A orquestra veio do Rio de Janeiro, ficou arranjada naquele mezanino. As luzes todas acesas, paredes brancas como neve, as janelas escancaradas como mãos abertas a convidar a todos. Os noivos e os pais saudavam um a um os convidados. Aquele lustre ali acabara de ser montado no dia anterior, substituíra a outro muito lindo, mas a mãe da noiva fora até a Europa e adquirira na Itália este de agora.”

O rapaz estava hipnotizado pela narrativa detalhada que lhe fazia o homem. Porém, cada vez mais se questionava em seu silêncio:

“Por que o Desengano? Em que instante ele responderá ao meu questionamento?”

Entretanto, ele fora conquistado pelo relato e gestos do narrador e era assim: só ouvidos. Por seu lado, o homem completamente embebido pela própria narrativa, roubou-lhe os pensamentos. Com emoção incontida foi descrevendo para ele cada momento daqueles instantes mágicos, como quem desfaz os fios de um novelo dos tempos.

“A orquestra recebeu o sinal do pai de Gabriela, e passou a tocar o repertório devidamente selecionado pelos familiares dos noivos. O jovem casal abriu o baile; eram exímios dançarinos. Em seguida seus pais, e aos poucos o salão desta linda mansão foi tomado pelos convidados. Como a seguir por um relógio, os administradores da festa, após duas horas de um repertório escolhido a dedos e esplendidamente tocado, fizeram o fim do baile. Era chegado o momento de os noivos cortarem o bolo de casamento. Retratistas especializados trabalhavam sem parar, tudo estava sendo filmado. Dezenas de garrafas de champanhe francês explodiram no ar. Os noivos cortaram o bolo. Ela lhe ofereceu um pedaço e ele repetiu-lhe o gesto. Tomaram champanhe em taças bordadas em fios de ouro, oferecidas pelas mãos do outro, num gesto cheio de ternura. Garçons finamente trajados assumiram a distribuição da bebida e dos pedaços de bolo. A orquestra voltou a tocar em ritmos suaves: valsas, boleros e melodias dos sucessos da época.”

“Vi tudo aquilo meu jovem, eu era um rapazinho. Mas, os anos passaram, seus filhos nasceram e a morte levou os pais de Gabriela. Depois disso, este casarão ficou esquecido por muito tempo: acredito que por pelo menos uns vinte anos. Passado esse tempo, ele foi completamente reparado para a realização de uma festa para comemorar a carreira brilhante de Eduarda, a filha mais velha de Gabriela e Bartolomeu. Ela tornara-se compositora e cantora de imenso sucesso.”

“Em nome da nostalgia, trouxeram a mesma orquestra; ela foi contratada para acompanhar o show de sua filha. Meu Deus, ela possuía uma voz maravilhosa. Suas músicas com melodias e letras de uma pureza esplendorosa. Meu jovem, ela é uma verdadeira poetisa.”

Ele foi narrando e o jovem cada vez mais curioso e apreensivo, pois o tempo passava ligeiro, como sempre ele o faz quando a história é boa. O jovem preocupado queria dizer-lhe que voltaria em outro dia para que ele terminasse, pois com certeza sua mãe já deveria estar nervosa com seu atraso. Mas ele não pôde. Aquele homem o prendia com sua história.

“Meu filho, a chuva clara vem do céu e turva as águas do rio. Saiba que Bartolomeu Buenno após as mortes dos sogros, e depois de perder também seus pais, mudou-se para a cidade do Rio de janeiro, para de lá, administrar os empreendimentos das famílias. Gabriela ficou aqui no interior de Minas, pois precisava ainda de cuidar dos três filhos mais novos. Eles tiveram oito filhos: três meninas e cinco meninos. Os mais velhos estudando ou trabalhando no Brasil e no exterior.”

Meu Deus, pensou o jovem a repetir dentro de si aquelas palavras que nunca antes ouvira:

“A chuva clara vem do céu e turva as águas do rio. Será que está aí o motivo do Desengano?”

O homem tomou o lugar de seus pensamentos e novamente deu sua voz à história:

“Gabriela, após a reforma, realizou seu sonho, voltando a morar aqui. Mãe zelosa, sempre cuidou com carinho de seus filhos. Adorava também trabalhar nos jardins da mansão. Bartolomeu  vinha para cá em todos os finais de semana e feriados; e nesses dias eles nunca ficavam distantes. Até que aconteceram os primeiros dias de sua ausência. Ele se desculpava dizendo-lhe que estaria ocupado com novos contratos comerciais; às vezes justificava sua falta em função de reuniões ou quaisquer outras desculpas. Gabriela sentiu então o gosto amargo da água escura do rio.”

“Vinda do Rio de Janeiro e chegando sem avisar-lhe, sua melhor amiga de infância, Sílvia Velloso, em quem Gabriela confiava cegamente, trouxe-lhe provas de que Bartolomeu a estava traindo. Mostrou-lhe várias fotos que fizera dele com outra mulher. Ela mandara tirá-las depois de vê-lo, por várias vezes, acompanhado dessa mulher em restaurantes e shows na zona sul da cidade.”

“Ao receber aquelas fotos, Gabriela voltou no tempo e por alguns segundos se viu jovem na bela mansão de seus pais, no dia de seu casamento. Por que ele fez isso comigo? Por quê? Sua amiga ofereceu-lhe ajuda. Mas ela sentindo que precisaria de um tempo para se refazer, agradeceu-lhe pela coragem que tivera. Nos dias subsequentes, ela conversou com cada um de seus filhos, e os informou sobre a situação. Foram unânimes, apoiaram a mãe e condenaram o pai. Gabriela pediu ao filho mais velho que procurasse pelo pai e o informasse que ela entraria com um pedido de separação.”

“Ela contratou um advogado de sua confiança e o incumbiu através de seu escritório para tratar de tudo. Seu ex-marido nunca mais poria os pés naquela casa. Bartolomeu tornou-se réu confesso de sua culpa; com o espírito corroído pelo arrependimento, veio a falecer em pouco mais de um ano. Gabriela perdeu-se no labirinto de seus sentimentos, pois também não pôde suportar tanta dor. Dois anos após a morte de Bartolomeu veio a falecer, vítima de sua angústia. Um mal que não tem cura!”

O jovem, cada vez com mais pressa de ir embora, pediu-lhe então que fosse breve.

“Rapaz, preciso só de mais um pouco. Eu nasci e fui criado aqui, meus pais trabalharam a vida inteira para essa família. Os olhos de minha alma viram a alegria e a morte dessa família. Não falta riqueza para os filhos e netos, e sei também que eles são muito unidos. Parece que quando a dor é grande, ela faz surgir essa força que é tão necessária a todos nós.”

“Eu agora mato sua curiosidade. Hoje é vinte e três de setembro; eu não lhe disse, mas foi nessa data que eles se casaram. Nesse dia, tenho ordens de acender todas as luzes, descerrar as cortinas e abrir todas as janelas, escancarar as portas principais e passar o filme.”

Dizendo isso, o jovem ouviu a orquestra tocando, ouviu sorrisos e vozes misturadas a estouros de champanhe. O homem acabara de ligar o videocassete. O filme completo da festa do casamento fora transferido para essa mídia. À medida que as cenas eram repassadas, foi crescendo nele uma última questão. Interrompendo-o, ele lhe fez mais uma pergunta:

“Senhor, depois de todo o sofrimento dos filhos com a atitude covarde de seu pai, por que então eles ainda mantêm vivas as recordações desses momentos?”

 “Meu caro jovem, você está certo. Aqui já foi o reino da felicidade, mas desde o dia em que a chuva clara turvou as águas do rio, uma tristeza profunda cobriu este lugar. Carrego eu, o fardo imenso deles todos. Tornei-me então o servo de suas desilusões. Apelidei este lugar, pelo qual sou pago para zelar, de o lindo paraíso que batizei por Desengano.”

E antes que o rapaz insistisse com ele sobre aquele ato estranho dos familiares, o homem encerrando seu último questionamento, lhe disse:

“É somente ela, meu jovem. A poetisa quer que essa data seja eterna. Os poetas são assim, não aceitam nunca a morte do amor!”

     

 13º Circuito de LITERATURA DOCLESI e 5º Concurso Nacional de Contos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                                                                                                                                 

 

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