JOSÉ RIBAMAR FERREIRA , com pseudônimo FERREIRA GULLAR , mesclou “ Gullar “ do sobrenome da mãe e “ Ferreira “ , sobrenome da família . Além de ser um eminente Poeta , sempre teve convicção política como militante do Partido Comunista Brasileiro , o que lhe custou um exílio durante a ditadura militar , e é ocupante , com enorme merecimento , da cadeira 37 da ABL , Academia Brasileira de Letras . Ferreira Gullar centraliza as temáticas de suas poesias na questão social , denunciando os problemas relacionados aos fatos da sociedade como um todo , dentre eles a desigualdade existente . Testemunha de uma realidade contraditória e injusta , Gullar recriou em seus versos a lucidez e a revolta frente a um tempo vazio de sentido . A diversificada produção do Poeta origina-se de um múltiplo escritor que tem sua ótica poética aguçada no descompasso social diante da transparência do mundo .
No metapoema abaixo , Gullar expressa , em seu discurso poético , uma forma de protesto contra a desumanização e a subvida brasileira em uma realidade sofrida do cotidiano e nas desgraças de nosso tempo . As descrições dos problemas sociais negadas em cada estrofe da poesia afastam-no de qualquer estímulo para se compor uma criação poética.
Não há vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão.
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado: “não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.
O Poeta demonstra uma enorme vontade de viver , apesar dos grandes problemas que maculam a tranqüilidade , como : a falta de liberdade , o custo de vida , o baixo salário . Mesmo diante de obstáculos proibitivos , Gullar constrói , com muita liberdade , sua criação poética sempre fazendo referência à opressão militar , certamente com bastante convicção de que a vida vale a pena .
"Dois e Dois são Quatro"
Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
como é azul o oceano
E a lagoa, serena
Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena
- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.
Fazer poesia cujo tema é a própria poesia , denomina-se METAPOESIA . Nas duas criações abaixo , Gullar , no poema FALAR , extrapola sua mensagem poética na determinação do silêncio na fala do poeta por ocasião de se criar a obra literária . Gullar paradoxalmente desfila , através de uma bela linguagem figurada , uma contradição entre o falar e o se calar diante de uma inspiração artística . No poema “ NÃO-COISA “ , há um demonstrativo perfeito de uma visão enigmática das palavras poéticas , em relação às suas formas e aos seus conteúdos , quando o poeta tenta , no poema , dizer o indizível e com isso expondo o vazio da obra poética .
Falar
A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.
Não-coisa
O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.
Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?
Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?
A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes
só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas
invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,
um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos
No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:
subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa
sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa ë fechada
à humana consciência.
O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.
Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,
a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós .
Maravilhoso poema que versa sobre a IDA e o REGRESSO das coisas , incluindo , principalmente , as relações amorosas . Como tema central , Gullar deixa que cada leitor descubra , através dos versos , as intenções subliminar contidas na poesia ( o que o texto induz sem estar expresso ) , na referência mítica que o poema proporciona .
O QUE SE FOI
O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.
Se o que foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.
Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.
Então por que me faz
o coração bater tão forte?
A expressão “ cantiga “ remete-nos a um sentimento lírico-amoroso onde o tema “ amor “ é cantado de uma forma sublime . O poema abaixo é o canto da paixão em que o amado usa de uma vassalagem amorosa para que , mesmo diante da morte , sua amada perpetue-o em um espaço junto a ela para embarcar seus sentimentos .
Cantiga para não morrer
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
Em uma visão aguçadamente política , Gullar evoca , em sua poesia, uma denúncia sobre a realidade do Nordeste Brasileiro com o poder dos coronéis que mandam e desmandam no povo subordinado a eles , tratando a todos com muita desumanidade , demonstrando , assim , seu poder e sua força , e o Poeta denuncia no poema a realidade dos fatos . João Boa Morte - Cabra Marcado para Morrer
Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
só mata cabra da peste,
só mata o trabalhador.
O dono de engenho engorda,
vira logo senador.
Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.
João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro.
Se o coronel não quer dar mais,
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro.
Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço.