Affonso Romano de Sant'Anna , artista e intelectual , com uma produção diversificada e consistente, pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista. Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades , seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais . Nascido em Belo Horizonte (1937), participou ativamente dos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória poética . Nos anos 70, dirigindo o Departamento de Letras e Artes, PUC/RJ, estruturou a pós-graduação em literatura brasileira do Brasil, considerada uma das melhores do país . Com muita honra , este articulista do Jornal Leopoldinense teve o privilégio de ser um de seus alunos no primeiro mestrado da Universidade . Com obras de grande cunho social , conseguiu novas maneiras de conquistar público para a poesia dentro do contexto de nossa sociedade moderna . Em suas citações sobre um conceito poético ,construído em forma de poesia , o Poeta expressou de uma maneira lírica : “ "Às vezes, você perde vários poemas, porque sente uma frase, sente algo murmurado no seu espírito e não presta atenção porque está ocupado com os ruídos da vida. É necessário apurar o seu ouvido, ter a humildade de anotar a coisa mesmo quando ela não é muito boa. Pode, de repente, um texto meio nebuloso,meio esquisito, meio simplório demais, dar raiz a um poema posteriormente interessante." Nos duros tempos da última ditadura militar em que as ações eram opressivas , Affonso Romano de Sant'Anna publicou corajosos poemas nos principais jornais do país , o que o inspirou para a criação e desenvolvimento do tema desta poesia .
“OS DESAPARECIDOS"
De repente, naqueles dias, começaram a desaparecer pessoas, estranhamente. Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias.
Ia-se colher a flor oferta e se esvanecia. Eclipsava-se entre um endereço e outro ou no táxi que se ia. Culpado ou não, sumia-se ao regressar do escritório ou da orgia. Entre um trago de conhaque e um aceno de mão, o bebedor sumia. Evaporava o pai ao encontro da filha que não via. Mães segurando filhos e compras, gestantes com tricô ou grupos de estudantes desapareciam. Desapareciam amantes em pleno beijo e médicos em meio à cirurgia. Mecânicos se diluíam - mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias. Desaparecia-se a olhos vistos e não era miopia. Desaparecia-se até a primeira vista. Bastava que alguém visse um desaparecido e o desaparecido desaparecia. Desaparecia o mais conspícuo e o mais obscuro sumia. Até deputados e presidentes esvaneciam. Sacerdotes, igualmente, levitando iam, arefeitos, constatar no além, como os pescadores partiam.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias. Os atores no palco entre um gesto e outro, e os da platéia enquanto riam. Não, não era fácil ser poeta naqueles dias. Porque os poetas, sobretudo - desapareciam.
Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria que carros de fogo arrebatavam os mais puros em mística euforia. Não era. É ironia. E os que estavam perto, em pânico, fingiam que não viam. Se abstraíam. Continuavam seu baralho a conversar demências com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo com suas roupas e dentes.
Em toda família à mesa havia uma cadeira vazia, a qual se dirigiam. Servia-se comida fria ao extinguido parente e isto alimentava ficções - nas salas e mentes enquanto no palácio, remorsos vivos boiavam - na sopa do presidente.
As flores olhando a cena, não compreendiam. Indagavam dos pássaros, que emudeciam. As janelas das casas, mal podiam crer - no que viam. As pedras, no entanto, gravavam os nomes dos fantasmas pois sabiam que quando chegasse a hora por serem pedras, falariam.
O desaparecido é como um rio: - se tem nascente, tem foz. Se teve corpo, tem ou terá voz. Não há verme que em sua fome roa totalmente um nome. O nome habita as vísceras da fera Como a vítima corrói o algoz.
E surgiam sinais precisos de que os desaparecidos, cansados de desaparecerem vivos iam aparecer mesmo mortos florescendo com seus corpos a primavera de ossos.
Brotavam troncos de árvores, rios, insetos e nuvens em cujo porte se viam vestígios dos que sumiam.
Os desaparecidos, enfim, amadureciam sua morte.
Desponta um dia uma tíbia na crosta fria dos dias e no subsolo da história - coberto por duras botas, faz-se amarga arqueologia.
A natureza, como a história, segrega memória e vida e cedo ou tarde desova a verdade sobre a aurora.
Não há cova funda que sepulte - a rasa covardia. Não há túmulo que oculte os frutos da rebeldia.
Cai um dia em desgraça a mais torpe ditadura quando os vivos saem à praça e os mortos da sepultura.
Affonso Romano cantou de todas as formas , com enorme lirismo , todos os sentimentos relacionados ao AMOR : na sua visão platônica ; nas insinuações sexuais ; na dor da separação tudo expresso em uma linguagem amorosa e uma fascinante demonstração orgástica . No poema a seguir , há uma mescla do que foi aqui evidenciado .
O Amor e o Outro
Não amo melhor nem pior do que ninguém. Do meu jeito amo. Ora esquisito, ora fogoso, às vezes aflito ou ensandecido de gozo. Já amei até com nojo. Coisas fabulosas acontecem-me no leito. Nem sempre de mim dependem, confesso. O corpo do outro é que é sempre surpreendente.
Em uma maravilhosa meta-poesia ( poesia com o tema sobre poesia ) o Poeta constrói com muita simplicidade e bastante lirismo a relação inspiradora na feitura da poesia entre a letra poética como manifestação da arte e inspiração no ato do amor .
Arte-final
Não basta um grande amor para fazer poemas. E o amor dos artistas, não se enganem, não é mais belo que o amor da gente. O grande amante é aquele que silente se aplica a escrever com o corpo o que seu corpo deseja e sente. Uma coisa é a letra, e outra o ato, quem toma uma por outra confunde e mente.
O ato sexual é tema constante na poesia de Affonso Romano , sempre desvendando , poeticamente , vários mistérios e atitudes durante a relação sexual . É o que esta poesia expressa em forma de interrogação pelo acontecimento entre os amantes no leito .
Intervalo amoroso
O que fazer entre um orgasmo e outro, quando se abre um intervalo sem teu corpo?
Onde estou, quando não estou no teu gozo incluído? Sou todo exílio?
Que imperfeita forma de ser é essa quando de ti sou apartado?
Que neutra forma toco quando não toco teus seios, coxas e não recolho o sopro da vida de tua boca?
O que fazer entre um poema e outro olhando a cama, a folha fria?
No poema seguinte , o Poeta descreve cenários que embelezam uma forma de despedida das coisas do mundo , observando as paisagens e os atos que fazem parte da vida de cada ser humano , começando a amar o simples .
Despedidas
Começo a olhar as coisas como quem, se despedindo, se surpreende com a singularidade que cada coisa tem de ser e estar. Um beija-flor no entardecer desta montanha a meio metro de mim, tão íntimo, essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices, a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas quanto mais habito a noite! Nada mais é gratuito, tudo é ritual Começo a amar as coisas com o desprendimento que só têm os que amando tudo o que perderam já não mentem.
Affonso Romano é possuidor de uma técnica poética em que diz , através de uma linguagem mítica , muita coisa com poucas palavras que se avolumam em seus significados diante de uma breve leitura . Neste poema , mesmo não devendo , expressa uma enorme fascinação e admiração pelas beleza das mulheres , embora casado .
Fascínio
Casado, continuo a achar as mulheres irresistíveis. Não deveria, dizem. Me esforço. Aliás, já nem me esforço. Abertamente me ponho a admirá-las. Não estou traindo ninguém, advirto. Como pode o amor trair o amor? Amar o amor num outro amor é um ritual que, amante, me permito.
Neste minúsculo poema , Afonso Romano versa sobre uma reflexão niilista que desestrutura diante de um belo jogo de palavras do ser e do não ser .
Reflexivo
O que não escrevi, calou-me. O que não fiz, partiu-me. O que não senti, doeu-se. O que não vivi, morreu-se. O que adiei, adeus-se.
Fazer declaração de amor sempre foi muito inibitória , porque é certamente resultado do medo . Em uma breve manifestação poética , Affonso Romano estabelece a relação que existe entre o amar e o dizer que ama .
Amor e Medo
Estou te amando e não percebo, porque, certo, tenho medo. Estou te amando, sim, concedo, mas te amando tanto que nem a mim mesmo revelo este segredo.
Encarar a morte com amor é um ato inconcebível , porque , se temor da morte é uma realidade , tal fato só se entende com muita licença para estruturar um poema que versa , como forma destemida , sobre elementos contraditórios . E é com bela visão poética que é construída esta poesia .
Amar a Morte
Amar de peito aberto a morte. Não de esguelha, de frente. Amar a morte, digamos, despudoradamente. Amá-la como se ama uma bela mulher e inteligente. Amá-la diariamente sabendo que por mais que a amemos ela se deitará com uns e outros indiferente.