João Cabral de Melo Neto é um escritor singular dentro da literatura brasileira. Para ele, o trabalho poético não é fruto de uma “inspiração” ou alguma espécie de mero momento criativo, como é comum pensar-se sobre o ato de fazer poemas. Ao contrário, João Cabral declarava que a poesia se encontra no rigor de sua construção e na organização do texto em si. O ideal artístico do poeta é o da “simetria”, algo que só poderia ser conseguido através de um exercício autocrítico e de um trabalho linguístico rigoroso. Por conta disso, João Cabral muitas vezes é chamado de “arquiteto das palavras” ou de “o poeta-engenheiro”. Além de ir contra a ideia de que o fazer poético é fruto de uma inspiração do escritor, o que dá à poesia um caráter extremamente subjetivo, João Cabral buscou construir um poema objetivo, cuja visão não vem mais carregada de sentimentalismo, mas sim com dados objetivos da realidade.
Em uma metapoesia , cercada de maravilhosos recursos metafóricos , “ TECENDO A MANHÃ “ simboliza o método criativo na construção do poema , tendo o CRIADOR representado pelo GALO , como o artesão que monta lentamente suas peças , e sua CRIAÇÃO simbolizada pela MANHÃ em alusão ao futuro , demonstrando , em suas linhas poéticas , um confronto entre o tempo presente e o tempo futuro . A junção de todos os GALOS à procura da obra final ganha espaço e se torna individual . O CRIADOR deixa marca em sua CRIAÇÃO na caminhada em busca do amanhã , o que nos faz pensar que o futuro está aí .
TECENDO A MANHÃ
"Um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro: de outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzam os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã, desde uma tela tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão".
Neste poema , o Poeta , em uma comparação ideológica a que chamamos metáfora , faz uma bela associação do relógio , como objeto que marca a hora , com o tempo que escraviza e enjaula o ser humano , fazendo-o dependente dele . Há , ainda , uma demonstração comparativa entre os homens e os pássaros , quando afirma que o valor de tudo está no canto das aves .
O RELÓGIO
Ao redor da vida do homem há certas caixas de vidro, dentro das quais, como em jaula, se ouve palpitar um bicho.
Se são jaulas não é certo; mais perto estão das gaiolas ao menos, pelo tamanho e quadradiço de forma.
Umas vezes, tais gaiolas vão penduradas nos muros; outras vezes, mais privadas, vão num bolso, num dos pulsos.
Mas onde esteja: a gaiola será de pássaro ou pássara: é alada a palpitação, a saltação que ela guarda;
e de pássaro cantor, não pássaro de plumagem: pois delas se emite um canto de uma tal continuidade .
O poema seguinte versa sobre o ambiente em um reduto de trabalho , criticando e rejeitando todas as regras impostas para andamento das tarefas executadas pelo trabalhador , envolvendo as atividades das funções a partir das segundas-feiras , demonstrando um cenário , com bastante morbidez , pessimismo e insatisfação , em que atuam os funcionários de uma repartição .
DIFÍCIL SER FUNCIONÁRIO
Difícil ser funcionário Nesta segunda-feira. Eu te telefono, Carlos Pedindo conselho.
Não é lá fora o dia Que me deixa assim, Cinemas, avenidas, E outros não-fazeres.
É a dor das coisas, O luto desta mesa; É o regimento proibindo Assovios, versos, flores.
Eu nunca suspeitara Tanta roupa preta; Tão pouco essas palavras — Funcionárias, sem amor.
Carlos, há uma máquina Que nunca escreve cartas; Há uma garrafa de tinta Que nunca bebeu álcool.
E os arquivos, Carlos, As caixas de papéis: Túmulos para todos Os tamanhos de meu corpo.
Não me sinto correto De gravata de cor, E na cabeça uma moça Em forma de lembrança
Não encontro a palavra Que diga a esses móveis. Se os pudesse encarar... Fazer seu nojo meu...
Carlos, dessa náusea Como colher a flor? Eu te telefono, Carlos, Pedindo conselho.
De todas as produções poéticas de João Cabral de Melo Neto , a sua obra-prima é o Auto “ MORTE E VIDA SEVERINA “ que demonstra , em cada verso , uma visão perfeita das histórias simples e significados profundos de um povo que padece com problemas climáticos e sociais do Nordeste brasileiro . O protagonista é um retirante, um nordestino de vinte anos que foge da seca e da vida sofrida e miserável do Sertão e que, caminhando às margens do rio Capibaribe em direção à cidade do Recife, tem a esperança de encontrar vida melhor. João Cabral classificou sua peça de auto de natal pernambucano, levando em conta tanto a forma popular dos versos curtos, comuns nos autos medievais, quanto a circunstância de tratar de um nascimento (natal) e de ambientar-se no sertão pernambucano. O título promove uma proposital inversão entre vida e morte, colocando esta em primeiro lugar. Essa troca da ordem natural indica os encontros com a morte e a vitória da vida, no final. Morte e Vida Severina é uma peça de teatro em versos. O autor resgata uma forma popular – os versos curtos – para tratar de um assunto que atingia particularmente o povo nordestino: a seca. Além disso, o nome próprio Severina é usado como adjetivo no título, sugerindo uma ampliação de sentido que é confirmada logo nas primeiras palavras do retirante, que, ao tentar se apresentar, evidencia que sua situação particular é, na verdade, uma metonímia do que ocorre com outros sertanejos, igualmente vítimas da seca. Devido à dimensão do poema , apresentaremos um fragmento do primeiro momento do auto para uma visão , mesmo limitada , do conteúdo da obra .
MORTE E VIDA SEVERINA
— O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mais isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte Severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar alguns roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.