Lamentavelmente , como encerramento desta série de artigos publicados no site do Jornal Leopoldinense , o Cantinho Gramatical , em sua despedida , optou por uma breve visão sobre os recursos com a linguagem mítica ( poética ) manifestada no poema que é o mundo feito de palavras não somente para comunicar , mas também arquitetadas de outro modo , confabuladas pelo som , pelo ritmo , pela estrutura , pela imagem , pelos significados , redescobrindo nas palavras as outras faces secretas , como dizia Drummond . Estamos falando de ESTILÍSTICA , ciência linguística que estuda os processos de criação da linguagem pelo homem. Do ponto de vista de ato linguístico como termo de um processo criador , devemos , pois , distinguir duas disciplinas correlatas : 1ª. , a que estuda metodicamente os elementos da língua ou GRAMÁTICA ; 2ª. , a que estuda a linguagem expressiva que se cria com esses elementos ou ESTILÍSTICA . Salientando que a língua não exprime só o pensamento mas também os sentimentos e as volições , propõe-se estudar os efeitos da atividade nos atos da fala , os processos de que se servem as línguas para deixar ver a carga emocional que tão frequentemente acompanha o enunciado .
O método de análise estilística segue inclusive as divisões clássicas da gramática, daí a tripartição em estilística fônica, léxica e sintática , objetivando realçar a expressividade nas manifestações poéticas .
Estilística Fônica : Estuda os recursos expressivos presentes no nível fônico da língua. Na prosódia, por exemplo, os acentos de altura e intensidade , a repetição dos mesmos fonemas no verso ( aliteração ) ou de fonemas homorgânicos ( coliteração) podem apresentar valor afetivo . A evocação sonora sugerida pelos fonemas também pode ser explorada estilisticamente. Veja-se, por exemplo, o poema “ Os sinos “ , de Manuel Bandeira:
Sino de Belém, pelos que inda vêm!
Sino de Belém bate bem-bem-bem.
Sino da paixão, pelos que lá vão!
Sino da paixão bate bão-bão-bão.
A aliteração do /b/ e a reiteração de vocábulos labiais evocam fonicamente o tanger dos sinos. A onomatopéia bem-bem-bem sugere o som metálico e alegre “pelos que inda vêm” (os batizados); bão-bão-bão, o dobre de finados “pelos que lá vão” (os mortos).
Observemos agora o recurso fônico no poema “ Os Sapos “ de Manuel Bandeira onde se observa a voz interpretativa imitadora do COAXAR dos sapos como efeito estilístico na repetição : _ “ Meu pai foi à guerra !
_ “ Não foi “ _ “ Foi ! “ _ “ Não foi ! “
Acrescenta-se , embora não reconhecida pelos técnicos da língua e da literatura , a ESTILÍSTICA DA GRAFIA que é um recurso para aproximar no espaço físico da apresentação poética a FÔRMA da letra com o referente da FORMA poesia em expressividade mais visual do que fônica , técnica também manifestada no movimento concretista da literatura . Como demonstração deste tipo de recurso no poema citado abaixo, nota-se expressividade estilística do som " / K / " representado graficamente pela letra " C " que , por coincidência , tem a forma de um " COLAR " aberto .
" COLAR DE CAROLINA "
Com seu colar de coral ,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina .
O calor de Carolina
colore o colo de cal ,
torna corada a menina .
E o sol , vendo aquela cor
do colar de Carolina ,
põe coroas de coral
nas colunas da colina .
Um outro exemplo , ainda de Cecília Meireles , em “ JOGO DE BOLA “ , apresenta no poema o eixo semântico em que o enfoque está expressivamente na FÔRMA da letra " O " , usando e abusando de sua presença na estrutura do poema , até por que a palavra BOLA tem a forma de um " O " . Vamos à poesia :
" JOGO DE BOLA "
A BELA bola
rola :
a bela bola do Raul .
Bola amarela ,
a da Arabela .
A do Raul ,
azul .
Rola a amarela
e pula a azul .
A bola é mole ,
é mole e rola .
A bola é bela ,
é bela e pula .
É bela , rola e pula ,
é mole , amarela azul .
A de Raul é de Arabela ,
e a de Arabela é de Raul .
Parte superior do formulário
ESTILÍSTICA LÉXICA : Cabe à estilística léxica estudar os aspectos expressivos das palavras ligados aos seus componentes semânticos e morfológicos, os quais, entretanto, não podem ser completamente separados dos aspectos sintáticos e contextuais . É preciso considerar que o caráter difuso de muitos significados permite certa liberdade em entendê-los e que as sensações que as coisas despertam não são iguais para todos os indivíduos . As palavras da língua, com os seus significados, não resultam de um raciocínio homogêneo e consciente sobre o mundo das coisas, mas de uma atividade de inteligência intuitiva, procurando consubstanciar experiências parceladas, sem a visão de um conjunto. A estilística léxica é aquela em que há uma tonalidade afetiva para as palavras decorrente de uma natureza mais ou menos convencional atribuída às coisas significadas.
Passemos a alguns exemplos com certas classes gramaticais utilizadas com expressividade.
Há na língua portuguesa da família indo-europeia as formas nominais dos verbos : infinitivo , gerúndio e particípio . Todos exprimem processo , ação e aspecto . Em relação à duração dentro do tempo verbal , o gerúndio expressa um aspecto durativo ( movimento ) no tempo . Em “ Rondó dos Cavalinhos , de Manuel Bandeira , composto no Jóquei Clube , onde tudo é MOVIMENTO , em que quase tudo se esvanece , há uma acentuada utilização do gerúndio , para caracterizar a dinamicidade do ambiente temático .
RONDÓ DOS CAVALINHOS
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo…
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo…
O sol tão claro lá fora
E em minh’alma — anoitecendo!
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo…
Alfonso Reys partindo,
E tanta gente ficando…
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo…
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando…
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo…
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo…
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minh’alma — anoitecendo!
Estilística sintática : O objetivo de sua análise é a ordem sintática e os fenômenos a ela inerentes, tais como ruptura da ordenação lógica preferencial dentro de um verso ou de uma frase. Nesse caso, à estilística sintática interessam as variantes de colocação, suscetíveis de causar emoção ou sugestionar o próximo.
Observemos a riqueza de recursos estilísticos presentes neste soneto de Raimundo Correia.
ANOITECER
Esbraseia o Ocidente na agonia
O Sol... Aves, em bandos destacados,
Por céus de oiro e de púrpura raiados,
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...
Delineiam-se, além, da serrania
Os vértices de chama aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia...
Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua...
A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula , trêmula... Anoitece.
Exploraremos , além dos recursos sintáticos , outros que se manifestam na poesia . Inicialmente, fatos que emocionam e sugestionam os leitores na utilização de métodos estilísticos quanto à colocação dos termos na estrutura da frase, motivando uma relação entre a posição das palavras e a sugestão relacionada com o conteúdo poético . Na primeira estrofe ( 1º. Quarteto ) já observamos alguns recursos na distribuição das palavras na frase . Vejamos : em :
“ Esbraseia o Ocidente na agonia
O Sol... “
O sujeito do verbo esbrasear é o SOL que na estrutura lógica da frase deveria estar antes do verbo . Entretanto , Raimundo Correia optou em colocar depois do verbo e caindo para o segundo verso, ocasionando um sensação de queda , porque o tema da poesia é o PÔR do SOL : esse é um recurso que torna a frase mais bela e rica poeticamente . Ainda na mesma estrofe , outros dois ricos fenômenos de estilística sintática em :
“ ... Aves, em bandos destacados,
Por céus de oiro e de púrpura raiados,
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia... “
No 1º. Caso , o termo AVES, que é o sujeito, encontra-se em grande distanciamento de seu verbo FOGEM , caracterizando esse eixo semântico do verbo FUGIR , como um afastamento acentuado . O 2º. CASO é a posposição do sujeito PÁLPEBRA DO DIA do verbo fechar , sugerindo um traço de fechamento da pálpebra , como um apagar das luzes .
Outros fenômenos estilísticos expressos no quarteto são : Estilística Fônica : Em “ ... bandos destacados...” há uma coliteração que é a repetição dos fonemas homorgânicos ( sons identificados em todos os critérios e distintos somente no papel das cordas vocais _ surdos vs sonoros ) OCLUSIVOS : /b/ - /d/- /d/- /t/ - /k/- /d/ , sugestionando a sensação de um som explosivo produzido pelas batidas das asas dos pássaros que fogem . Estilística Léxica: O recurso gramatical no uso do plural da palavra CÉUS ( não há vários céus ) fragmentando o espaço celeste , sugestiona uma visão panorâmica múltipla , caracterizada pelas diversas nuvens na formação de partes do céu . E com uma bela expressividade semântica na seleção do verbo “ ESBRASEAR “ , sugestionando um movimento de coloração próprio das brasas ( acende, apaga ) , o que enriquece maravilhosamente o cenário poético !
“ Na criação de um poema , a escolha de palavras é marcada por critérios especiais , é uma relação motivada a partir dos sons e dos ritmos que queremos arquitetar , das imagens que queremos configurar , dos sentidos que queremos intensificar , o que resulta na importância precisa dos estudos centrados na estilística . “
Waldemar Pedro Antonio e-mail : [email protected]