Terminei meu ginasial em Miraí em 1953. Num domingo de 1954, manhãzinha, véspera do primeiro dia de aula no Curso Clássico do Colégio Leopoldinense, papai arranjou um carro emprestado e saiu comigo rumo a Leopoldina. Desapontamento ocorreu quando ele, ao chegar, ficou sabendo que o internato somente me abrigaria a partir da manhã seguinte. Sereno como sempre lhe foi peculiar, ele comentou: “não tenho aqui comigo dinheiro para hotel e refeições, não posso voltar com você para Miraí e tornar a vir amanhã. Não sei o que fazer. Tem sugestão?”.
Demonstrando coragem que eu não sabia possuir, propus-lhe eu dormir na porta do colégio, fazendo da mala o travesseiro e ele, recusando minha proposta, me disse "vamos andar que Deus nos dará a solução".
Na Cotegipe, rua principal, nós dois a pé, pequena mala na mão porque o automóvel não tinha tranca, um senhor nos olhou, parou-nos e falou que conhecia papai. Este, surpreso, completou o diálogo, afirmando "eu também conheço o senhor de uma ida a minha casa em Miraí com a família, pois uma de suas filhas era colega em Cataguases da minha filha mais velha, a Maria, que os irmãos chamam Lalá".
Era ! Era o senhor Edmundo Dias da Costa !
Tudo esclarecido, fomos almoçar na companhia dele, então proprietário do Hotel Santos. Comidinha boa, que, aliviados, degustamos com imenso prazer. Papai se foi e eu fiquei como que anestesiado, envergonhado em lar estranho e, “vítima” de agrado maravilhoso de todos, deitei-me assim que houve como.
De manhãzinha, quando dona Amanda foi me despertar, eu já estava prontinho para ir em direção ao Colégio. Tomei café com leite e pão com manteiga, comi um belo naco de queijo e uma ou duas bananas e o Sr. Edmundo, carregando minha “bagagem”, foi me levar à presença do Monsenhor Guilherme de Oliveira, diretor.
A solidariedade da família do Sr. Edmundo Costa, sem dúvida, foi um cartão de visita do que é Leopoldina, onde as pessoas dificilmente se visitam, mas, nos infortúnios, nunca se negam a ajudar e, sentindo necessidade, até mesmo, sem limites, oferecem seus préstimos.
Quando, na primeira folga no internato, lhes fiz uma visita, fui obrigado a esperar o almoço. E, depois que agradeci a gentileza e elogiei a qualidade da comida, tive que assumir o compromisso de ir sempre para almoçar, o que fiz várias vezes.
Em algum aniversário meu, ganhei dele uma camisa de tecido, manga comprida, mas por algum motivo eu não a vestira ainda. Era “Guararapes”, sinônimo de ótima qualidade, cuja representação comercial era exercida por seu “neto” Rodolfo Tavares Tomé. Num casual encontro nosso na esquina da Travessa Pedro II com a Rua Cotegipe, ele me falou, possivelmente depois de algumas pinguinhas que ele tanto apreciava em seus momentos de lazer, "não vi você com a camisa!". Brincando, respondi "estou guardando para estrear no seu enterro". Deu-me, à vista de todos, um chute na bunda, xingou mamãe e se foi, sorrindo feliz.
Dias depois, a Neves, uma das filhas, me ligou, dizendo que o Sr. Edmundo estava internado no Hospital (à época inexistia CTI). Fui para lá e, ao chegar, penso que ele, mesmo mal, percebeu quando lhe apertei a mão, beijei-o no rosto e pensei em absoluto silêncio, “pelo amor de Deus, não morra agora não, desta vez não !”
Quando ele teve alta e voltou para casa, fui quase que em seguida à casa dele, estreando a camisa. Antes de responder a meu “boa tarde”, ele deu uma gargalhada e disse "ah, seu fdp, pensou que eu ia morrer e agora vem aqui com a camisa”!
Fiquei em silêncio, meneando a cabeça negativamente, mas meu semblante desmentia o gesto. Ele, feliz e sorridente, sempre viciado em dizer palavrões, xingou-me docemente e nós rimos bastante !
Por algum tempo continuei a desfrutar abusadamente do prazer de sua amizade e somente eu sei o quanto senti sua morte.
Quando vereador tive oportunidade de ver aprovado projeto dando o nome de Edmundo Dias da Costa a rua em Leopoldina, perpetuando, na história do torrão leopoldinense, a existência de um cidadão honestíssimo, trabalhador, progressista, bom amigo, excelente esposo e chefe de família.