POR CLAYTON NETZ
Última nação a libertar seus escravos, em 1888 (Cuba foi a penúltima, em 1886), o Brasil foi quem mais importou negros africanos, entre meados do século 16 e meados do 19. Pesquisas recentes de um programa das universidades Emory, de Atlanta, nos Estados Unidos, e Hull, de Kingston, na Inglaterra, refizeram as contas e constataram que chegaram ao país 5,8 milhões de escravos, cerca de 60% dos 10 milhões trazidos para as Américas.
Esse total, representa quase dez vezes mais do que os 597 mil africanos traficados para os Estados Unidos, que aboliram o cativeiro 23 anos antes do Brasil, em 1865, no bojo de uma sangrenta Guerra Civil.
À época da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, estima-se que apenas 5% dos negros que se espalhavam pelas províncias brasileiras eram escravos. O censo de 1872 apontava uma proporção maior, 15,2 % dos 10 milhões de habitantes do país. Os restantes estavam entregues à própria sorte, vivendo de bicos, exercendo funções subalternas de pintores, pedreiros e carregadores de carga, entre outros.
Com a assinatura da Lei, no dia 13 de maio, a situação não mudou. Ninguém procurou prepará-los para a liberdade, seja através da educação, seja com a oferta de preparação profissional ou mesmo distribuindo terras para cultivo. Em vez disso, o primeiro governo da República, proclamada um ano depois, em 1889, preferiu investir na atração de imigrantes europeus para suprir a ausência dos negros na lavoura, como mão de obra ou oferecendo-lhes pequenas propriedades.
Ou seja, o Brasil resolveu estimular o branqueamento da população brasileira, acelerado pelo ingresso dos estrangeiros, mas principalmente pela miscigenação. Como demonstra a antropóloga, historiadora e escritora Lilia Moritz Schwarcz, autora do monumental “Lima Barreto – Triste Visionário”, sobre o escritor negro Afonso Henriques de Lima Barreto, não faltaram estudos científicos defendendo a teoria do branqueamento.
O principal deles era de autoria do diretor do Museu Nacional, o médico João Batista de Lacerda, que financiado pelo presidente da República, o marechal Hermes da Fonseca, participou do Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em 1911. “De acordo com Lacerda, a mestiçagem no Brasil seria (apenas) transitória e benéfica, não deixando no futuro rastros ou pistas”, escreveu Lilia.
“Ele comparava o Brasil com os Estados Unidos: se por lá grassava um sistema escravocrata violento, no Brasil o processo teria sido bem mais “pacífico.” Baseado nas estatísticas, que mostravam um declínio da população negra entre os censos de 1872 e 1890, Lacerda sustentava que o embranquecimento da população “era um fato consumado” e arriscava que em um século, após três gerações, seríamos um país de brancos.
O que se viu não foi o que queria o governo: mais de um século depois das previsões de Lacerda, não apenas o Brasil não embranqueceu como está mais negro do que nunca. Segundo o IBGE, nada menos de 54% dos 207,7 milhões de brasileiros declaram-se pretos ou pardos, conformando, portanto, a maioria da população brasileira. Em 2004, eram 48%. Com 112 milhões de pessoas, o Brasil abriga a segunda maior população negra do mundo (só perde para a Nigéria).
Separado, esse contingente formaria o 11º país do mundo em número de habitantes, com uma capacidade de consumo avaliada em R$ 1,6 trilhão, o equivalente a US$ 500 bilhões, de acordo com uma pesquisa do Instituto Locomotiva para a Universidade Zumbi dos Palmares. “É um mercado com grande potencial consumidor, equivalente ao 17º maior do mundo, para o qual as empresas deveriam olhar”, diz Renato Meirelles, presidente do Locomotiva. “Eles estariam no G-20 mundial.”
Segundo Meirelles, esse número poderia ser ainda mais relevante: por conta da desigualdade salarial entre negros e brancos, deixam de ser injetados nada menos de R$ 808 bilhões, anualmente, na economia brasileira. “Se não for por justiça social, que seja por inteligência: a desigualdade racial atrapalha a economia”, diz.
A pesquisa do Instituto Locomotiva desmistifica, também, uma verdade estabelecida entre os brasileiros: o de que a desigualdade racial está vinculada à desigualdade educacional.
Parcialmente é verdade, pois, na maior parte dos casos, as diferenças educacionais entre brancos e negros são realmente gritantes, no Brasil. No entanto, mesmo quando se trata de pessoas com grau de escolaridade e de experiência semelhantes, os negros recebem um terço a menos do que seus concorrentes brancos. “Sou branco, paulistano, curso superior, 40 anos. Pelo simples fato de ser branco ganho 31% a mais do que um homem negro, paulistano, 40 anos, com curso superior”, enfatiza Meirelles no estudo.
Lilia Moritz Schwarcz lembra que no período pós abolição corria pelas ruas do Rio de Janeiro um provérbio, segundo o qual se “a liberdade era negra, já a igualdade continuava branca”, numa referência à Lei Áurea, que aboliu formalmente a escravidão no Brasil.
“Mas o fez de forma muito conservadora: sem pensar em ressarcimentos ou na futura inserção das populações de libertos que ficaram submetidas a séculos de escravidão.”, afirma. Otimista, ela acredita que essa situação tende a mudar. Para ela, o ano de 2017 vai ficar na história como aquele em que a questão racial estourou no País todo, nos mais diversos setores e deixou mais claro para os brasileiros a realidade dura da discriminação e do racismo histórico e estrutural vigentes.
Um dos exemplos mencionados por Lilia em artigo para o jornal O Estado de S. Paulo é o fato de que Lima Barreto, uma espécie de escritor incômodo para as elites brancas, com sua literatura irreverente e militante, tenha sido homenageado na Feira Literária Internacional de Paraty (Flip). O outro é o sucesso do ator Lázaro Ramos, que lançou sua biografia na Flip. “Lázaro, que morava num lugar afastado na Bahia, precisou ir para a cidade grande e assim “descobrir” sua raça”, afirma. “Chegou na Flip como estrela global e saiu de lá um pensador e escritor consagrado.”
Para a escritora, os brasileiros aprenderam, em 2017, ainda que com muito atraso, que raça é um tema incontornável da nossa agenda cidadã. E que raça continua a ser um plus perverso nos censos oficiais, que mostram como os negros morrem em maior número e mais jovens, têm menos acesso à educação e à saúde, têm os piores postos de trabalho e salários.
“A gravidade do assunto mostra, pois, como ele não é de interesse apenas das populações diretamente afetadas pela discriminação – diz respeito a cada um de nós”, afirma Lilia. Para além das boas intenções, o fato é que embora sejam maioria da população, os negros brasileiros são tratados como minoria, não sendo prioritários nas políticas públicas, nas empresas e no que se refere à igualdade de direitos. “Padecemos de uma grande miopia social, o Brasil não sabe o que fazer com sua população negra”, diz Adriana Barbosa, da Feira Preta. “É algo que não pode seguir sendo mantido debaixo do tapete.”
Aos números, com dados do estudo do Locomotiva, do Instituto Ethos e do IBGE:
É preciso desenhar?
Extraído do capítulo Miopia Social, do livro Empreendedoras por Natureza- volume II