05/08/2019 às 20h28min - Atualizada em 06/08/2019 às 19h32min

Irineu Lisbôa: breve relato de uma trajetória fascinante

Professor Rodolfo Alves Pereira
Filho de Maria Cândida de Paiva Xavier Lisboa e Antônio Maximiano Xavier Lisboa, Irineu Lisbôa nasceu em 25 de março de 1894, em São Sebastião da Pedra Branca, atual Pedralva, no sul de Minas Gerais. Seu pai era médico, membro da Academia Imperial de Medicina, doutorou-se na Faculdade de Medicina da Bahia, foi vereador, empreendedor, defensor de ideias liberais e republicanas; sua mãe, mulher devotada, religiosa e caridosa, era filha de um ilustre chefe político local, o Coronel Gaspar de Paiva.   

Dona Maria Cândida e o Doutor Antônio Maximiano tiveram quatorze filhos, mas somente seis sobreviveram, entre eles Irineu, um jovem curioso, inteligente, que, a exemplo de seu pai, optou por seguir carreira médica. Após concluir os estudos secundários em Itajubá, Irineu partiu para a capital - Belo Horizonte. Em 1912, ingressou na recém-criada Escola de Medicina de Minas Gerais.

Na capital mineira, o jovem Irineu Lisbôa deparou-se com um canteiro de obras, fruto do planejamento prévio que envolvera a nova capital do estado após a proclamação da república. Belo Horizonte viu-se tomada por novos prédios públicos, escolas, avenidas, bulevares, cafés, confeitarias e trilhos para os bondes. O comércio e as atividades industriais estavam em expansão, as pessoas, de diversos lugares, não paravam de chegar à capital mineira!

Acostumado com a tranquilidade da pacata Itajubá, Irineu ficou encantado com a agitação e a intensidade da vida numa grande cidade. Apesar da oferta de distrações urbanas, nada afetou sua determinação e seu engajamento nos estudos médicos, o que refletia em seu desempenho acadêmico: aprovado com "plenamente em Hygiene, Medicina Legal e Obstetrícia, distinção em Clinica Medica, Physica, Chimica e Historia Natural plenamente grau 9". O jornal Sul de Minas destacou, em nota, o bom aproveitamento do futuro esculápio, bem como registrou a expectativa em relação ao promissor Irineu:

 
"Telegrama de Belo Horizonte dá-nos a feliz nova de ter completado com excelentes notas o primeiro ano do curso da Faculdade de Medicina daquela capital, nosso aplicado e inteligente conterrâneo Irineu Lisboa. Aliás, não se pode esperar outra coisa do Irineu, que se vem revelando desde o Ginásio de Itajubá, onde fez o curso de preparatórios com brilhantismo." 
Aula de Anatomia na Escola de Medicina em Belo Horizonte
 
Após concluir o curso em 1917, Irineu foi designado por Samuel Libânio, professor da Escola de Medicina e chefe da Diretoria de Higiene do estado, para assumir o cargo de Médico Sanitarista no Posto de Profilaxia Rural em Leopoldina, na Zona da Mata mineira. A instalação do posto de higiene e profilaxia rural atendia a uma reivindicação das elites locais, preocupadas com a proliferação de doenças, como a febre amarela, a ancilostomíase, a bouba, a varíola, a cólera. Surtos endêmicos interrompiam o comércio, paralisavam a circulação do trem, colocavam vidas em risco, tanto dos mais ricos quanto dos pobres, enfim, a doença era um problema social e econômico que deveria ser debelada a qualquer custo.
 
O saneamento rural era uma política nacional, fruto de uma parceria entre a União e os estados, com o apoio filantrópico da Fundação Rockfeller. Leopoldina, com sua posição geográfica privilegiada, tinha uma economia próspera, com agronegócio, companhia energética, banco, escola e faculdade, além de uma elite política importante - capitaneada pelo então Deputado Dr. José Monteiro Ribeiro Junqueira. Atribui-se ao seu valor econômico o fato de ter sido pioneira a receber um posto de profilaxia, medida que, posteriormente, se estendeu às outras cidades e regiões do estado. 

Naquela época, a opilação era uma calamidade no município. As pessoas, tomadas pela doença, ficavam exangues, prostradas, anêmicas, sentiam vontade de comer terra, em suma, eram vítimas de um parasita o qual não podiam ver - o Ancylostomaduodenale. O verme atacava o homem pelos pés, penetrava os poros, atingia a corrente sanguínea e se alojava no intestino, onde procriava. Os ovos das larvas eram expelidos pelas fezes e contaminavam o solo, uma vez que as propriedades rurais eram desprovidas de latrinas e fossas sanitárias adequadas. Além disso, a população tinha o hábito de andar descalça, o que favorecia a contaminação e o surgimento da endemia. 

A missão de Irineu Lisbôa e de seus companheiros do Posto de Profilaxia era clara e árdua: tratar nossa gente e tomar as medidas necessárias para prevenir o mal, deixando o povo saudável e produtivo, apto a gerar riquezas para os grandes proprietários de Leopoldina e da região.

Ao chegar à cidade, em agosto de 1918, Irineu Lisbôa pôs-se a trabalhar. Prestava atendimento no posto, visitava as casas, fazia palestras nas escolas e se dirigia, a cavalo ou de charrete, até as fazendas do município, onde cuidava dos enfermos. Somente entre 19 e 24 de agosto daquele ano, foram distribuídas 575 latinhas para coleta de fezes. Sendo assim, os populares apelidaram o jovem médico de "doutor das latinhas", mais de quatrocentos exames foram realizados. Ficou constatado que 83% dos pacientes testaram positivo para verminoses. O tratamento previa o uso do quenopódio e timol, administrados em jejum; depois vinham os purgativos à base de óleo de rícino ou sal amargo. 
O médico sanitarista visitava as casas e as fazendas de charrete, principal meio de transporte da época.
A campanha para extirpar as doenças intensificava-se e expandiu-se para os distritos, com a criação de subpostos. Irineu foi designado para o distrito de Santa Izabel, hoje Abaíba. Lá ele ficou hospedado numa grande fazenda, de propriedade de Antônio Monteiro Ribeiro Junqueira. Foi nessa ocasião que o Dr. Lisbôa conheceu aquela que seria a grande companheira de toda  a sua vida - Cinira Ribeiro Junqueira. 

Erico Ribeiro Junqueira e seus familiares ao lado de Dr. Irineu Lisbôa

 












 
Dona Cinira cresceu no seio de uma distinta família, sua educação e sensibilidade eram notáveis, o mesmo podia ser dito a respeito de sua beleza, premiada em um concurso local. Ela  dedicou-se, com nobreza e brilhantismo, às causas filantrópicas. Praticou a caridade, presidiu a Sociedade de Assistência aos Lázaros e defesa contra a Lepra e, posteriormente, trabalhou na Casa de Caridade Leopoldinense, no setor de radiologia.
 

Casou-se com Irineu em 1925 e tiveram dois filhos: Alice, que faleceu aos 27 anos de idade, e Antônio Marcio Junqueira Lisboa (1927), o qual, seguindo os passos de seu pai, cursou medicina e tornou-se referência nacional em Pediatria. Antônio Marcio, inclusive, é uma de nossas principais fontes de pesquisa. Ele tem nos fornecido, além de sua carinhosa atenção, valioso  acervo com documentos, livros e imagens, uma preciosa fonte histórica que nos ajuda a reconstituir o passado de Leopoldina sob a ótica e as ações de seu pai - pioneiro do Saneamento na cidade e em toda a região.


Dr. Irineu Lisbôa, com seu trabalho profilático de excelência, do qual faziam parte a realização de exames, a prescrição de remédios, a administração de vacinas e a execução de campanhas educativas nas escolas, nas empresas e nos jornais, foi requisitado em Ubá, Além Paraíba, Juiz de Fora, entre outras cidades mineiras, mas foi em Leopoldina que ele fixou residência. 
 

Com a carreira consolidada e a vida familiar estabelecida, Dr. Lisbôa adquiriu uma bela casa no município, criou raízes no lugar, fez inúmeros amigos, dos quais destacamos um em especial -  o artista Funchal Garcia, com quem dividia a paixão pelo carnaval. 


A festa popular encantava Irineu desde os tempos da meninice e, ao lado de Funchal, ele encontrou a possibilidade de manifestar toda a vitalidade de seu espírito criativo. A cada ano, Irineu e Funchal criavam um novo número carnavalesco, satirizando usos e costumes, arrancando risos e aplausos do público. 

Na celebração popular de 1931, a dupla desfilou no carro do posto de Higiene, aproveitando o momento festivo para conscientizar a população local acerca do risco do mosquito Stegomyiafasciata ou Culex aegypti (Aedes).










O carro estava ornado com uma representação gigante do vetor da febre amarela sobre as plantas; Irineu, de branco, fantasiava-se de médico; ao seu lado, em tom fúnebre, Funchal ostentava uma fantasia de caveira. Eis a mensagem: "O mosquito mata. Previna-se!". Assim, de forma didática, divertida e eficaz, o médico e o artista alcançavam a todos - letrados e analfabetos.

Em 1948, Irineu aposentou-se do serviço estadual. Seguiu trabalhando na Casa de Caridade Leopoldinense, especialmente no setor radiológico. Apoiado por sua esposa, Dr. Lisbôa seguia diligente em sua missão médica, praticava a caridade, a exemplo de seu pai, não cobrava consultas e exames dos mais pobres. Foi incansável até os 79 anos de idade, quando se retirou da medicina e dedicou-se à arte: compunha quadrinhas, adorava música, escrevia cartas para amigos e familiares ilustradas por ele mesmo e continuava aproveitando o carnaval. Costumava dizer que "velho é uma pessoa que tem dez anos mais do que nós". 

Mas o tempo chega para todos, e Dr. Lisbôa faleceu no dia 28 de Julho de 1986, aos 92 anos de idade. Alguns meses antes, na última carta que escreveu para amigos e familiares, demonstrou gratidão e assim se expressou: "Tive uma vida alegre e nada me faltou, assim como a boa convivência com vocês, com meus bons pais, e meus irmãos". A Gazeta de Leopoldina traduziu em suas páginas o sentimento da cidade que acabara de perder o "símbolo número um de sua alegria". O periódico registrou: "O Dr. Lisboa deixou para todos nós um exemplo de coração, de trabalho e sobretudo de amor ao próximo, principalmente quando este próximo é humilde e pobre. Com sua morte os pobres de nossa cidade perdem um grande amigo e defensor".
 
Ao longo de sua carreira, colecionou honrarias, recebeu a medalha da Inconfidência e o título de "Cidadão Leopoldinense". Sabia da importância de estudar, por isso participava de congressos no Brasil e no exterior, sempre buscando o aperfeiçoamento profissional para melhor exercer seu ofício de curar. Foi membro da Sociedade de Radiologia de Minas Gerais e presidiu a Associação Médica Regional de Leopoldina. Em suma, era um profissional de reconhecida competência pelos seus pares e respeitado pelo povo. 

Sua memória continua bem viva, por meio de seu legado de trabalho e amor à profissão e à família. A policlínica de Leopoldina e o serviço de Radiologia da Casa de Caridade Leopoldinense levam o seu nome, numa demonstração de que Irineu Lisbôa segue presente no imaginário e no coração dos leopoldinenses. 
 

Por
Rodolfo Alves Pereira
Historiador
Mestre em História




 

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