15/06/2020 às 17h13min - Atualizada em 15/06/2020 às 17h13min

A MISÉRIA RONDA A CIDADE

Fome e libidinagem. Dois quadros que estarrecem – Crianças esquálidas dormem ao relento e comem restos putrefatos – Ranchos de sapé e barro com um cômodo apenas, no qual se cozinha e se dorme – Mau cheiro constante que se percebe a mais de 100 metros de distância - A tuberculose ceifa vidas, diariamente - Meninas de 12 anos provocam escândalos – urge uma solução para o caso

Reprodução/jornal Ilustração
Algum leitor talvez nos considere exagerados em nossas afirmações ao terminar a leitura dessa reportagem. Antecipamo-nos, pois, tudo que aqui vai se relatar, poderá ser facilmente comprovado por nós.

Na saída de Leopoldina para Cataguases, num bairro denominado Aldeia, moram umas quatro centenas de pessoas – os párias da cidade, os que não vivem, vegetam.

Descrever as condições de vida dêsse agrupamento de criaturas infelizes, tal como é na realidade, seria por demais vergonhoso para nossa sociedade que se diz civilizada e cristã. Faremos, apenas, ligeiros apontamentos. Que não se admire o leitor.

Em casebres feitos de barro e sapé, sem assoalho, sem água, sem luz, sem instalações sanitárias de espécie alguma, a maioria deles, com simplesmente dois cômodos moram essas pessoas. De modo geral, vegetam nesses casebres de seis a dez criaturas. Domem no chão sobre colchões imundos, entre pulgas e percevejos, baratas e ratos. Alimentam-se de angú, farelinho de arroz, pirão de farinha de mandioca, isso cozido, sem sal e gordura numa só panela suja em duas ou três vezes.



Os pratos? São latas de doces e conservas que ganham de esmola. Garfos, colheres e facas, são os próprios dedos das mãos. Passam dias e dias sem tomar banhos, tanto as crianças quanto os adultos. As crianças fazem suas necessidades fisiológicas ao redor das casas. Quando não estão nuas, apenas alguns trapos lhes cobrem os corpinhos mirrados. O repórter, ao visitar vários dêsses casebres, foi rodeado de crianças, que o olhavam como se fosse coisa de outro mundo. Umas tímidas e espantadas ficavam um pouco mais distantes, outras pediam um pedaço de pão, um trocadinho, um brinquedo e coisas mais.

Visitamos esses casebres durante o dia e durante a noite, e verificamos que mocinhas de doze anos, treze e catorze anos vivem, por incrível que pareça, entregues à libertinagem generalizada!

Enquanto mães, noite adentro afogam-se no vício e na cachaça, seus filhos dormem, como porcos, ao relento. Tivemos oportunidade de presenciar várias dessas cenas. Vimos dois pretinhos de quatro anos de idade, aproximadamente, comendo restos putrefatos.

Num dêsses casebres encontrámos uma velha cega a exalar um mau cheiro horrível. Perguntamos-lhe a quanto tempo não tomava banho. Respondeu-nos simplesmente: -“Já fáis muito tempo mêo fio”. Cuida dela outra velha, também em condições miseráveis de higiene.

Noutro casebre, deparámos com Úa mulher, cuja “facies” lhe revelava o estado de tuberculosa, já nos últimos dias de vida. E o mais triste e doloroso é que ao seu lado duas criancinhas choravam de fome.

Noutros mais, ainda, que percorremos,fomos encontrando misérias e mais misérias.

Não pense o leitor que estamos exagerando. Estes nossos apontamentos não dizem 30% sequer do que realmente vimos e que poderá ser visto por quem o deseje, a qualquer hora. Há tempos, em companhia de algumas pessoas que acompanhavam, encontramos um morfético vivendo no seio de uma família composta de cinco criancinhas e u’a mulher. O casebre dêle tinha apenas dois cômodos.

Umas das pessoas que nos acompanhava, Sr. Átila Lacerda da Cruz Machado, foi quem tomou todas as providências para remoção e tratamento do doente.

Noutro casebre, encontramos uma senhora em estado pré-agônico, devorada por um câncer de fígado.

Há um mundo de dor, de sofrimento e miséria no bairro Aldeia,  Criancinhas que nascem  e crescem em condições piores que de muitos animais domésticos de nossas casas. Mães que dão à luz a seus filhos no chão por falta de um leito e que no dia seguinte precisam estar de pé, obrigadas pela necessidade de conseguir alimentos. Velhos que não andam mais e ficam jogados aos cantos como se fossem lixos.
 
Quando um desses miseráveis famintos rouba uma galinha de nossos quintais, para saciar a fome, chamamos logo a polícia. É preciso castigar o “infrator da lei”.

Quando aos sábados, desce à cidade essa multidão de pedintes, que vêm em busca de minguados auxílios, costumamos chama-los de vagabundos, e se damos esmola, tiramos do bolso sempre o menor níquel!

Não há fantasia no que estamos analizando. É a pura verdade, triste e dolorosa verdade!

E temos quase a certeza de que muita gente dirá: - “Cada um com o destino que Deus lhe deu”, revelando nessa expressão, a sua alma egoísta. Se fóssemos descrever, quadro por quadro, o que presenciámos nesses casebres e em outros pontos da cidade, talvez muitas pessoas nos considerassem exagerado e pessimista. Preferimos, pois ficar apenas no que escrevemos.

HAVERÁ SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA?

Acreditamos que sim. Bastaria apenas um pouco de boa vontade. Se, por exemplo, todos os vereadores do município, o prefeito e vice-prefeito; os Juizes de Direito e Municipal, Promotor Público e Delegado de Polícia; as autoridades religiosas católicas, espíritas e protestantes,: representantes da indústria, comércio, lavoura, magistério, associações de classe, recreativas ou não, etc. Se, como dizíamos, todas essas pessoas se reunissem em torno de u’a mesa e deixassem de lado as idéias preconcebidas, o partidarismo, político e preconceito religioso, e pensassem  unicamente em termos de fraternidade e solidariedade, de trabalho e espírito de sacrifício em favor do próximo, pode-se-ia encontrar não uma, mas muitas soluções para o problema.

Acontece, porém, que somos ainda muito egoístas, vaidosos, personalistas, e não compreenderíamos nem realizaríamos coisa alguma,  nesta nossa Leopoldina, sem a infalível côr política e religiosa.

Até quando seremos assim?

Reportagem publicada no jornal Ilustração , edição n°145 – ano IV  de 25 de fevereiro de 1956. (Foi mantida a grafia da época)

O jornal tinha como fundador e diretor Joaquim Custódio Guimarães e como redator Washington Andries , o periódico era uma espécie de contraponto à conservadora e governista Gazeta de Leopoldina
 
 
 


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