03/10/2020 às 16h14min - Atualizada em 04/10/2020 às 16h14min

Amanhã vamos a Vista Alegre

O trem chegando em Vista Alegre. (Detalhe de Óleo sobre tela de Luciano "Luc")
Décio Fontanela

Nunca vou saber a verdade, mas gosto de acreditar que era o filho preferido do meu pai, Tercílio. Pelo menos era assim que eu me sentia.

– Décio, amanhã vamos a Vista Alegre de trem – ele me disse.

– Vamos levar o Mauro também?– pedi e meu pai concordou.

Mauro era um dos meus cinco irmãos, três anos mais velho que eu, meu companheirinho. Não queria que ele percebesse a preferência de nosso pai por mim, por isso pedi que ele fosse conosco na viagem. Saímos cedo, papai carregando um embrulho comprido, cuidadosamente enrolado por uma peleja. Carregava com cuidado, mas com muita segurança.

 

Uma casa por um rádio

Meu pai era administrador da Fazenda Luziânia. Tinha uma venda, criava porco, tocava o engenho de cana, produzia rapadura. A produção e a receita da venda eram dele.
 
Quando deixamos a fazenda em 1939, talvez ele tenha sido indenizado, ou talvez tenha economizado a vida toda, não sei, mas o fato é que nos mudamos para um terreno relativamente grande na cidade de Leopoldina. Grande o suficiente para ele construir seis casinhas, uma para nós e cinco para aluguel.
 
Moravam lá minha mãe, Joana, meu pai e eu e meus irmãos Lilita, Jacir, Arlindo, Luís e Mauro. Jacir morreu ainda menino de turberculose e minha irmã Laura se casou quando ainda morávamos na Luziânia. Eu me lembro dela vestida especialmente para o casamento, montada num cavalo que a levou para Abaíba, pela estradinha que passava por São Martinho. Deve ter sido um dia muito especial para todos porque a lembrança dessa viagem é uma memória tão vívida para mim!
 
As casinhas que meu pai construiu eram alugadas para os trabalhadores da fábrica. Um dia, um dos inquilinos propôs um negócio que hoje seria quase uma proposta indecente: trocar a casa por um rádio. A ideia era dar a meu pai um rádio Phillips e em troca ele passaria a posse da casa para o inquilino. Veja só que coisa... Meu pai aceitou! Aquele rádio foi uma alegria enorme. Todo final de tarde as portas e janelas ficavam cheias de vizinhos que vinham ouvir a novela na Rádio Nacional. Meu pai fazia questão de colocar o aparelho perto o suficiente para todos ouvirem bem. E o ex-inquilino? Bom... nunca mais pagou aluguel na vida!
 
João Atinarelli

Às vezes à noitinha, às vezes durante o dia, João Atinarelli, casado com minha tia Pina, irmã de minha mãe, passava em casa e me levava com ele as suas visitas de curandeiro. Muitíssimo bem recebido e muito requisitado, João e eu íamos de casa em casa visitar as pessoas doentes. Batia papo, pegava na mão, pedia silêncio e, muito sério e cerimonioso, receitava o tratamento. E era aí que eu entrava em cena. Acontece que o respeitadíssimo curandeiro João era analfabeto e o meu papel, menino de uns 10 anos, era o de escrever o que ele receitava como tratamento. Ditava e eu escrevia, às vezes receitava um Melhoral, às vezes umas compressas...
 
Rosa Chaim

Pois é, eu sabia escrever e fazer contas. Quando morávamos na cidade eu aprendi a ler e escrever com a Rosa Chaim, casada com Felício Meneghite. Éramos uma turminha de umas sete ou oito crianças, entre elas meu amiguinho José Laênio Locha. Íamos à casa da Rosa que ficava numa chácara, também conhecida como ‘Terreirão’. Ela devia ter uns 40 anos e não cobrava pelas aulas, fazia por pura generosidade. Éramos todos muito pobres na época, Rosa deve ter percebido e ensinava o abecedário à criançada.
 

Grupo Escolar Ribeiro Junqueira e sua entrada original - 1924 

(Autor desconhecido  -  Acervo do Jornal Leopoldinense)

Primeiro ano em um dia

Quando chegou a idade certa, José Laênio Locha e eu entramos juntos no Grupo Escolar Ribeiro Junqueira. Entramos no primeiro ano e assistimos juntos ao primeiro dia de aula da professora dona Nezinha. No segundo dia, ela nos pegou pelo braço, cada um em uma mão. Eu entrei em pânico! Já levando bronca no primeiro dia? Apavorados, fomos “arrastados” para a sala ao lado. Era a sala do segundo ano! Dona Nezinha percebeu que éramos alfabetizados e nos transferiu para o segundo ano. Isso mesmo, fiz o primeiro ano em um dia! Foi tudo tão rápido que não deu nem tempo de aprender o nome todo da professora. Aos 10 anos, depois de três anos de escola, eu terminaria o grupo escolar e sairia com o único diploma da minha vida inteira, um diploma de primário! Teve até formatura de primeiro ano! Depois, vocês sabem, como o ginásio era pago, eu parei meus estudos ali.
 
Voltando à viagem a Vista Alegre

Então fomos Mauro e eu a Vista Alegre de trem com nosso pai, que carregava aquele embrulho com todo cuidado. Ele estava levando uma espingarda que trouxera dos tempos da fazenda Luziânia. Veja bem, tudo isso foi durante a Segunda Guerra Mundial e meu pai tinha medo de sofrer perseguição por ser italiano e a vida se complicaria se a espingarda que ficava escondida no porão da nossa casa fosse encontrada. A viagem a Vista Alegre foi para vender a espingarda.

A perseguição nunca aconteceu. Apesar de a nossa origem nunca ter sido ignorada e de meu saudoso concunhado, Palimércio Montes, me chamar de italiano a vida toda, nunca ninguém da minha família sofreu discriminação pela origem imigrante.

E essa foi minha infância até que um dia meu irmão mais velho, Arlindo, chegou para minha mãe e disse “Arruma a roupinha do Décio que amanhã ele vai para o banco comigo”.

 

Décio Fontanella nasceu 1935 na Fazenda Luziânia, em Leopoldina, onde viveu até 1968, quando se mudou para São Paulo. Hoje vive com a família em Mogi Mirim, SP.


Notinha de Rodapé

Grande abraço, Cássio Muniz!

Muito obrigado a todos que têm escrito para mim desde a publicação da história da piscina do Brasília Country Clube. Tem sido uma alegria receber suas mensagens e telefonemas, Evanice Maranha Chaves, Ronaldo Lacerda França e José Luís Barcellos. Hoje eu tomo a liberdade de compartilhar com vocês a mensagem que recebi do Cássio Muniz:

“Apenas gostaria de complementar uma informação sobre a reportagem: A GLORIOSA PISCINA DO BRASÍLIA COUNTRY CLUBE, do Senhor Décio Fontanella. Ele pediu desculpas por não recordar quem havia comprado os azulejos em Juiz de Fora e venho aqui informar que foi meu saudoso pai, o Senhor Muniz do TIRISKEY. Sim, meu pai, Clécio Muniz que foi a Juiz de Fora e comprou em seu nome todo o material para a construção da piscina e dos vestiários do Clube. E ele se orgulhava de contar essa história por ter ajudado nessas melhorias que fizeram o clube atingir um patamar de destaque na área de lazer da cidade. Portanto, me senti na obrigação de complementar a informação sobre a história da piscina. Grato. Parabéns pela matéria. Cássio, Danilo e Célia Campanha Muniz.”
 
Cássio, muito obrigado por me lembrar do seu pai, o querido Clécio Muniz. Claro que me lembro dele, era um rapaz empreendedor, fazia as coisas acontecerem! Fiquei muito feliz de saber que ele também lembrava e contava esta história do Brasília. Um grande abraço para você e toda a sua família.


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