03/11/2020 às 19h54min - Atualizada em 03/11/2020 às 19h54min

Um Ex-Presidente da República me chama para uma conversa a sós

Banco Ribeiro Junqueira. (Foto: Autor desconhecido-Gentilmente cedida por Rodrigo Gesualdo )
- Décio Fontanella -
 
Sim, um dia, o Carlos Luz me chamou para conversar a sós na sala dele, na sede do Banco Ribeiro Junqueira, ali na praça General Osório. Mas, antes, conto como eu fui trabalhar lá.

Dois meses brincando na sede de um grande banco

Meu irmão me levou para trabalhar no banco quando eu tinha 12 anos e meio. No começo, foi só para brincar: passei dois meses brincando lá dentro. Quando chovia, ficava no corredor externo, me entretendo com a água que caía. Via os funcionários trabalharem, ficava rodando, não tinha função. Na hora da faxina, eu ia atrás para ver o que faziam. Às vezes subia até o almoxarifado do banco, no andar de cima, mas não fazia nada de específico, só estava conhecendo o território e tomando gosto. Mas algo sério também devia estar acontecendo: acho que fui sendo querido, aos poucos, por aquelas dezenas de pessoas que trabalhavam lá.
   
Até que uma moça pediu que eu levasse uma fotografia para fazer a admissão como funcionário. Essa moça era a Ruth Godinho que, com sua irmã Conceição, ocupavam os dois mais altos cargos exercidos por mulheres no banco: diretora do setor de pessoal e secretária do diretor-geral. Ruth e Conceição eram fantásticas: competentes, gentis, educadíssimas.

Sendo admitido, parei de brincar. Foi a minha sorte ser contratado: era um funcionário de um grande banco com 12 anos e meio de idade! Tinha saído do primário e creio que terminei minha educação básica na prática do trabalho, informalmente, com a ajuda daquelas cinquenta pessoas que passaram a ser meus colegas de profissão.
Morava na Praça da Bandeira, ia a pé ao trabalho. Mais tarde adquiri com meu salário uma bicicleta e ia pedalando.


Um dos modelos de Remington existentes na agência 

Uma super máquina Remington – mas com defeito de fabricação?

Acho que a sensação de estar diante de uma máquina de escrever da Remington, em 1948, seria o equivalente, hoje, a um menino de 12 anos ver diante de si o modelo mais recente de um potente computador da Apple. As máquinas eram importadas, pois a fábrica da Remington só se instalou no Brasil exatamente em 1948.

Bom, as máquinas de escrever estavam lá, e aí eu comecei a me interessar por elas. E também por aquelas máquinas de fazer as operações matemáticas básicas, aquelas antigas, com uma alavanca lateral para acionar a operação. Quer dizer, me interessei por letras e números.

Observei o teclado e perguntei para um camarada: “Álvaro... tá faltando um algarismo na máquina, falta o número um?”. O Álvaro olhou para os colegas que estavam por perto, deve ter dado uma piscadinha para eles, e todos riram amigavelmente - um cara bacana era o Álvaro, que tinha um irmão também colega nosso.

Com um ano de trabalho, já fazia algumas coisas que podiam ser feitas por uma criança: atender balcão, fazer e atender pedidos. Os colegas falavam: “ah, faz isso, Décio...”, e eu fazia.

Com 17 anos me considerava um bom operador da máquina de escrever, mesmo sem curso de datilografia. Passei a fazer uma parte da contabilidade originada pelas correspondências que traziam os extratos de todas as agências do banco. Isso era o “borrador diário” da contabilidade, lidando com os extratos das cinquenta agências, o que exigia ser um datilógrafo rápido, preciso e atento.

Ah, quanto ao “defeito” da Remington: na verdade, ela era perfeita! Para escrever o algarismo “um” era só usar a letra “L” minúscula... Aprendi com o Álvaro.

  
Idas e vindas ao Rio, com malas de dinheiro

Levávamos dinheiro para a capital, para Petrópolis e Areal, duas ou três vezes por mês. Íamos no carro do Joaquim Junqueira, cujo chofer era o Jader Tomé, mas sempre ia mais algum funcionário. Não chegávamos a ficar nem uma hora no Rio, a volta era  no início da tarde. A estrada de Petrópolis para Areal era sinuosa, acompanhando a margem do rio Piabanha. E a gente parava o carro numa daquelas curvas para descansar e comer alguma coisa.

Geralmente o fluxo das cédulas que carregávamos era de Leopoldina para o Rio, poucas vezes ocorria o inverso. Mas isso acontecia quando, por exemplo, o banco precisava pagar, com dinheiro em espécie, os fornecedores de leite da Cooperativa.

Criminalidade não nos preocupava, era pouca, nem passava pela nossa cabeça que carregar milhares de cruzeiros numa malinha de mão poderia representar um risco de vida! Lá na capital, uma vez, tivemos que pegar dinheiro num banco na avenida Getúlio Vargas. Voltamos a pé para a agência filial, na rua da Quitanda, passando pela Candelária.

Esse era o modo como o depósito de dinheiro em espécie era feito naquela época. O dinheiro era carregado em malas pequenas. De qualquer forma, nós portávamos, literalmente, malas de dinheiro conosco várias vezes por mês.

Gente cordial, doce e correta

Sim, os colegas eram assim. O trabalho diário era um negócio impressionantemente dinâmico, que centralizava todo o trabalho de contabilidade das cinquenta agências. Mas todos com disponibilidade para ensinar. Um verdadeiro rodamoinho de tarefas e interações humanas positivas. Lá, vim a conhecer minha futura esposa, Maria José Domingues Barcellos – mas essa é uma parte da história para ser escrita depois, a quatro mãos, não mais com uma Remington, mas digitando num computador.

Meu irmão Arlindo Fontanella era escriturário, devo minha vida profissional a ele.Fazia parte do grupo seleto que tomava conta da rotina do banco: o Otacir França, contador geral, seu irmão Otto, o Milton Cabral (costumávamos fazer um lanche na casa dele e voltar para o trabalho em seguida), o Geraldo Rodrigues, além da Ruth e Conceição Godinho. Em seguida, na hierarquia, vinha o Arlindo. Otacir era sensacional, amigo da gente. As relações com ele e com Otto eram excelentes. A gente batia papo, apesar de eu ainda ser um moleque.

Além das pessoas já citadas, ficam aqui homenagens à Regina, leda, João Machado, Neuza Gomes, Cleto, Lilita Condi (que trabalhava no cantinho, com um livro enorme), Heleninha - ótima funcionária -, Sebastião Raul, Lurdinha, Vicente, Raulzinho, Bené - sobrinho do bispo -, Nelson Paiva, Clécio Muniz, Benito, Artur - marido da Dircinha -, Maria Luísa Fontes, Maria José Bastos, Darci Ienaco, Benito, Aparecida Salomão, Geni Fajardo, Irene Lamoglia, Terezinha Rocha, Antônio Augusto, Mário Rubens, Alberto, Marisa - filha do Milton Cabral, Orlando Venturi, Ildeo Conti, Cristina e João Monteiro.Ao nomear, sempre esquecemos de pessoas também importantes para nós, mas não quis perder esta oportunidade de mencionar os que me vieram à mente nesse momento em que escrevo. Contribuíram imensamente para a minha formação ética e profissional.
 
O Ex-Presidente da República me chama

O diretor geral do banco era o Joaquim Cândido Ribeiro Junqueira, naquela época. Às vezes algum de nós tinha alguma coisa para falar com ele, ia lá na sala dele e falava. Era muito fácil o acesso.

Já o diretor-presidente do banco era o Carlos Coimbra da Luz. Uma pessoa realmente importante: presidente da Caixa Econômica Federal por seis anos, deputado federal durante 17 anos, presidente da Câmara dos Deputados por alguns meses e... Presidente da República durante três dias. É, portanto, nascida em Leopoldina a 19ª primeira-dama do país, Sra. Graciema.

Com tanta coisa a fazer na capital federal, o Carlos Luz frequentava mesmo era o seu escritório na rua da Quitanda, centro do Rio, onde ficava a agência do banco lá na capital. Mas, claro, tinha também sua sala na sede, em Leopoldina.

Teve uma época em que o Carlos Luz – não sei se era época de eleição – sentou-se na sua sala em Leopoldina e chamou funcionário por funcionário para conversar. Quando chegou minha vez, passou na minha cabeça uma dúvida: serei demitido? Mas eu já tinha uns 22 anos, estava com dez anos de casa e já tinha estabilidade – que era adquirida depois de nove anos. Então fiquei tranquilo ao começar esse papo com o Carlos Luz. Era um cara bacana, conversamos sobre amenidades.
 
Mensagem que recebi do José Luiz (Luja) Machado Rodrigues, que compartilho:

“Sr. Décio, lembro-me do senhor trabalhando no Banco com o Tio Geraldo Rodrigues. Parabéns pelas suas Memórias. Torço para que elas continuem. Quanto às memórias da edição 411, de 01.10.20, gostaria de registrar que, pessoalmente, não consigo imaginar a hipótese de qualquer discriminação aos descendentes dos imigrantes italianos de Leopoldina. Quem conhece a história desses imigrantes tem mais é que bater palmas para eles pelo muito que fizeram por nossa Leopoldina. Da leitura desta segunda parte das suas Memórias ficou a curiosidade de saber onde era o terreno adquirido por seu pai e, quem foi o italiano que veio para o Brasil? Teria sido o seu pai, Tercilio, ou, o seu avô? Atenciosamente,José Luiz (Luja) Machado Rodrigues.”

Luja, fico feliz e agradecido de entrar em contato com um sobrinho do Geraldo Rodrigues, um grande colega que tive! Sobre o preconceito com os imigrantes, é uma boa questão. O medo de ser discriminado era porque o Brasil participou da Segunda Guerra com os Aliados, portanto contra a Itália e a Alemanha. Lembrando que, em 1942, dezenas de navios brasileiros foram torpedeados por submarinos italianos e alemães, alguém poderia associar “ser italiano” a ser contra o Brasil. Mais um ponto: em São Paulo, pelo menos, parte da colônia italiana era alvo de preconceitos, dada a baixa escolaridade que, em geral, tinham os imigrantes da primeira onda migratória (1880-1930). Felizmente, os mineiros de Leopoldina foram muito mais hospitaleiros. Os que chegaram ao Brasil em fevereiro de 1899 foram meus avós Virginia e Francesco e seus cinco filhos até então nascidos:  meu pai Terzillo, com seis anos, e seus irmãos Marina, Valentino, Alfredo e Ida. O terreno que meu pai comprou ficava muito próximo à Praça da Bandeira. Luja, estou aqui me esforçando para lembrar onde ficava extamente o terreno mas não estou conseguindo... Morei lá até me casar, passando então a morar à rua Pres. Carlos Luz, perto de meus sogros. Um grande abraço!
 
 



Décio Fontanella nasceu 1935 na Fazenda Luziânia, em Leopoldina, onde viveu até 1968, quando se mudou para São Paulo. Hoje vive com a família em Mogi Mirim, SP.
 


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