13/07/2018 às 10h05min - Atualizada em 13/07/2018 às 10h05min
As aventuras de um juiz aposentado
João Baptista Herkenhoff
Quando depois de aposentado como juiz, também como professor me aposentei, fui tomado por uma crise de identidade.
O vazio manifestou-se forte quando tive de preencher a ficha de entrada num hotel.
Que profissão vou colocar aqui? Pensei alto.
Se estava aposentado na magistratura e no magistério, nem como juiz, nem como professor poderia me definir.
"Ser ou não ser", eis a questão. Shakespeare, pela boca de Hamlet, percebeu a tragédia humana, antes de Freud.
Ah, sim. Já sei. E escrevi na ficha do hotel, resolutamente: Professor itinerante.
Não que já fosse um verdadeiro professor itinerante. Estava mal e mal começando a jornada. Entretanto, essa autodefinição marcou no meu espírito uma mudança radical e fixei ali um itinerário de vida pós-aposentadoria.
Fiel a este projeto, tenho andado por aí a semear idéias. Não importa muito o valor real dessas idéias. Relevante é que a semeadura seja feita com alegria, espírito reto e boa vontade.
Quando estava na magistratura ativa, proferi palestras fora do Estado, porém com muita parcimônia porque o ofício de juiz me prendia à comarca. Aposentado como juiz, mas continuando ativo na Universidade Federal do Espírito Santo, ainda aí a liberdade de viajar era restrita em face dos compromissos do magistério regular.
Só depois de aposentado na Justiça e na Universidade, é que pude voar amplamente.
Fui a Paris para um evento ecumênico, com passagens dadas pela empresa aérea, em circunstâncias muito interessantes. Marquei o lançamento de um livro meu, em Vitória, na abertura de um encontro nacional de Faculdades de Direito. No dia do evento, autor presente, convidados presentes, coquetel à disposição dos convivas, falta o ator principal: o livro que seria lançado. O pacote de livros, que se destinava a Vitória, foi parar em Belém. Fico envergonhado diante de tanta gente que esperava comprar o livro. Escrevo uma carta ao presidente da empresa aérea, sem nada pedir. Apenas relatando minha decepção. O presidente sensibiliza-se com o relato e oferta passagens para mim e minha esposa para qualquer cidade do mundo, onde pousassem aviões da empresa.
Conto a história a minha mulher e lhe pergunto: qual o destino? Ela não pestaneja: Paris, capital do mundo. E de Paris, um pulo na Grécia, berço da Antigüidade.
A aposentadoria pode não implicar em encerramento de atividades, mas apenas na redução de compromissos exigentes. São múltiplas as novas experiências possíveis. Que cada um encontre seu caminho. Que a sociedade não cometa o desatino de desprezar a sabedoria dos mais velhos.
Agora, quando já vislumbro o entardecer, descreio de todas as seguranças supostamente conquistadas.
Volto a ser andarilho, peregrino, caminhante.
Aprendo com Guimarães Rosa: "Viver é perigoso. A aventura é obrigatória".
P.S. – É livre a divulgação deste artigo, por qualquer meio ou veículo, e também através da transmissão de pessoa para pessoa. Talvez este texto possa ser lido ou debatido em reuniões de grupos de idosos.