10/01/2023 às 10h03min - Atualizada em 10/01/2023 às 10h03min

Asfalto nas ruas: não há como explicar o inexplicável

Marcelo Freitas (*)
Trecho asfaltado da avenida Getúlio Vargas
Por muitos anos, de 1966 e 1980, morei em Leopoldina. Nesta aprazível cidade, passei minha infância e adolescência. Quando aí retorno para rever os amigos, uma das coisas de que tenho orgulho é ver que a cidade ficou à margem da febre do asfaltamento de ruas que se abateu sobre quase todas as cidade brasileiras, especialmente nos anos de 1980 e 1990. De uma hora para outra, os prefeitos consideraram que calçamento de ruas com paralelepípedo ou “pé-de-moleque”, como são conhecidos aqueles feitos com pedras mais irregulares, era coisa do passado e que o “chique” agora era ter as ruas asfaltadas.

Minhas explicação para esse delírio remete à conexão com um fenômeno urbano que ocorreu mais ou menos nessa época: o da verticalização das cidades do interior. Até então, a maior parte das cidades mineiras era marcada pela horizontalidade. Ou seja, eram cidades com poucos edifícios. O Bazar Renê, em Leopoldina, era uma destas exceções. Ao seu redor, só havia casas.

Porém, nos anos de 1980, ocorreu nas cidades brasileiras uma migração em massa das pessoas para as áreas urbanas. Ou seja, quem vivia na zona rural foi para as cidades. Em Leopoldina, quem morava no campo ou foi para a cidade de Leopoldina, ou foi para as sedes dos distritos, que também perderam população. Para isso, basta consultar as tabelas dos censos populacionais de 1970 a 2010. O crescimento da população da cidade de Leopoldina está lá, devidamente registrados em números inquestionáveis.

Tal fenômeno produziu, em Leopoldina e em centenas de outras cidades pelo país afora, outro fenômeno: o da verticalização. Com isso, da noite para o dia, a cidade viu serem levantados prédios e mais prédios. Com isso, o Bazar Renê deixou de reinar absoluto como o único edifício da cidade. A verticalização produziu na maior parte das cidades a falsa sensação de que as pessoas estavam morando em uma cidade grande. Para reforçar essa sensação e terminar a construção desse cenário fantasioso, faltava só uma coisa: asfaltar as ruas.

Foi o que fizeram centenas de prefeitos, em Minas e em outros estados. Por sobre o calçamento de paralelepípedos ou de pedras “pé-de-moleque” colocaram o asfalto. De uma hora para outra, o calçamento, que bons serviços de pavimentação prestava há dezenas, ou, em alguns casos, centenas de anos, passou a não valer mais nada e precisava ser escondido porque remetia a uma era de cidade parada no tempo. O que se viu pelo país afora foram bizarrices como o asfalto cobrindo ruas cujas edificações estavam preservadas por comporem o patrimônio histórico da cidade.

Felizmente, Leopoldina ficou de fora desse festival de bizarrices. Sempre que retorno à cidade, tenho orgulho de percorrer a área central e ver que os paralelepípedos estão lá. Os mesmos em que meus pais pisaram e que eu também pisei. Fico feliz em saber que o bom senso prevaleceu ao longo de todos estes anos.

Eu pessoalmente, considero um crime ambiental cobrir com asfalto ruas de paralelepípedo ou “pé-de-moleque”. Sem uma explicação lógica, estava sendo retirado de uso um recurso natural que não havia chegado ao final de sua vida útil. Era como se o prefeito jogasse fora um veículo que não apresentava defeito. Deveria ser punido por isso.

Em Leopoldina, temos o exemplo da avenida Getúlio Vargas, cujo calçamento, da ponte do córrego Feijão Cru até o seu final, é uma obra de arte da calceteria brasileira. Ali, o calçamento é tão perfeito que mereceria ser estudado por engenheiros e arquitetos para que aprendam, in loco, como é possível fazer algo tão perfeito e, ao mesmo tempo duradouro. Cobrir o calçamento da avenida Getúlio Vargas com asfalto é, a meu ver, um crime ambiental e, ao mesmo tempo, um crime contra a administração pública, pois não há justificativa técnica para tal desatino.

Porém, muitos poderão argumentar que preferem o asfalto em lugar dos paralelepípedos e que não há nenhuma incompatibilidade entre a preservação da memória da cidade e o uso do asfalto como pavimento. Estes argumentarão que bizarrice é um conceito subjetivo pois o que pode parecer feio para uns é bonito para outros. E vice-versa. Concordo. Vamos então às razões objetivas.

Razões financeiras – a durabilidade de um piso de paralelepípedo é infinitamente superior ao de uma rua asfaltada. Como o asfalto “gasta” muito mais rapidamente que o paralelepípedo, de tempos em tempos, este precisa receber uma nova camada. Isso gera um custo permanente para os cofres públicos. Há também uma questão técnica. O que normalmente os prefeitos fazem é cobrir o piso de paralelepípedo pelo asfalto. O correto seria retirar as pedras e fazer uma base própria para em cima desta base se aplicar o asfalto, que, assim teria uma vida útil maior. Mas não é o que normalmente se faz.

Pó de asfalto – o desgaste do asfalto gera um pó, a poeira de asfalto, que é um tipo de poluição do ar. No início da estação chuvosa, este pó transforma-se em uma fina camada de barro, que exige dos motoristas cuidado redobrado, pois torna o piso escorregadio. O asfalto também retém mais calor. Em uma cidade já quente, como Leopoldina, asfaltar as ruas seria contribuir para aumentar a temperatura da cidade.

Impermeabilização do solo – o asfaltamento aumenta o grau de impermeabilização do solo e a velocidade de escoamento da água de chuva. A combinação desses dois fatores poderá gerar tragédias que os leopoldinenses talvez nunca tenham experimentado. Aumentar o grau de impermeabilização significa impedir que parte da água de chuva se infiltre por entre as frestas do calcamento, evitando que cheguem ao principal curso d’água que corta a cidade, que é o córrego do Feijão Cru. Com isso, um volume maior de água irá desaguar naquele curso d’água, cuja calha não cresce de tamanho na época das chuvas. É a mesma o ano todo. O asfaltamento também torna a superfície da rua lisa. Isso constituiu outro problema, pois contribuiu para aumentar a velocidade de escoamento da água. Já o calçamento, com suas rugosidades contribuiu para reduzir essa velocidade, funcionando como microbarragens ao longo de toda a extensão das ruas. A combinação desses dois fatores – aumento da impermeabilização e da velocidade da água – significa que na chuva, mais água irá chegar em menos tempo ao Feijão Cru. O resultado concreto é que se toda a cidade fosse asfaltada, a estação das chuvas seria uma tragédia em Leopoldina, como já é nas grandes cidades brasileiras. Nesse cenário catastrófico, as águas do Feijão Cru chegarão a pontos onde nunca se imaginou que viessem a chegar. Quem viver, verá com os próprios olhos. Nunca é demais lembrar um alerta que é feito pelos cientistas que estudam o aquecimento global: nos próximos anos, a tendência é o aumento dos efeitos climáticos extremos. Assim, teremos mais calor, mais enchentes e mais frio.

Se, ainda assim, você prefere morar em uma cidade com ruas asfaltadas, só tenho a lamentar sua escolha.

(*) Marcelo Freitas é jornalista e mestre em Gestão de Cidade pela PUC Minas
 
 
 
 


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