24/06/2024 às 18h36min - Atualizada em 24/06/2024 às 18h36min

Juiz de Fora é pioneira na elaboração de estatuto contra o racismo

Legislação está em vigor desde o início do ano neste município da Zona da Mata que sediou, nesta segunda-feira (24), etapa regional de Seminário Legislativo Estatuto da Igualdade Racial.

A Câmara de Juiz de Fora sediou o terceiro encontro regional do Seminário Legislativo Estatuto da Igualdade Racial ( Foto: Elizabete Guimaraes)

A militância negra de Juiz de Fora (Zona da Mata), um dos municípios pioneiros no Brasil na elaboração de um estatuto da igualdade racial no País, sancionado no início deste ano, deu ao longo desta segunda-feira (24/6/24) uma contribuição decisiva na elaboração de uma legislação similar de âmbito estadual.

A Câmara local sediou o terceiro encontro regional do Seminário Legislativo Estatuto da Igualdade Racial, evento organizado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e entidades parceiras, que vai colher sugestões para subsidiar ações legislativas de reparação e de promoção da igualdade racial.

O seminário visa ampliar o debate sobre o Projeto de Lei (PL) 817/23, que institui um novo instrumento legal para garantir políticas públicas para assegurar à população negra, aos povos indígenas e às comunidades tradicionais seus direitos individuais, coletivos e difusos, igualdade de oportunidades e combate à discriminação.

Em Juiz de Fora, as discussões de dois grupos de trabalho em torno de um documento de referência e três temas definidos previamente contaram com a participação de representantes de dezenas de outras cidades da região. Foram aprovadas várias propostas originais e eleitos os representantes da região para participar da etapa final do seminário na ALMG, em agosto.

Ao todo, serão sete encontros regionais. Na etapa estadual será aprovado um documento final que poderá se desdobrar em requerimentos e projetos de lei, entre outros.

“A Assembleia está literalmente escrevendo um capítulo importante na luta do povo mineiro em busca de seus direitos, sobretudo da população preta, no combate ao racismo e a outras formas de discriminação. Isso nos faz lembrar da escritora negra Conceição Evaristo, que diz que a questão do negro não é para o negro resolver, mas para toda a nação brasileira em razão dessa dívida histórica.”
Leninha, vice presidenta da ALMG

Leninha, vice presidenta da ALMG

Dep. Leninha, vice presidenta da ALMG

Reparação

O PL 817/23, que aguarda parecer de 1º turno da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), é de autoria das deputadas Leninha (PT), 1ª vice-presidenta da ALMG, Andréia de Jesus (PT), presidenta da Comissão de Direitos Humanos, Macaé Evaristo (PT) e Ana Paula Siqueira (Rede).

As duas primeiras abriram os debates no encontro de Juiz de Fora, reforçando a ousadia e pioneirismo do Parlamento mineiro ao promover o debate de temas muitas vezes relegados a segundo plano na formulação de políticas públicas. No mesmo patamar estaria a questão das mudanças climáticas, também debatido atualmente em outro seminário legislativo.

Ainda na abertura do encontro, foi exibido um vídeo da deputada Macaé e Leninha, que comandou a reunião, leu um pronunciamento do presidente da ALMG, Tadeu Martins Leite (MDB), saudando os participantes. O coletivo local de cultura afro-brasileira e Hip-Hop “Vozes da Rua” também fez uma apresentação, denunciando que o racismo presente no inconsciente coletivo do povo brasileiro é como um vício difícil de largar.

Andréia de Jesus lembrou que, mais do que vontade política para reduzir a desigualdade racial, é preciso garantir, na elaboração do estatuto, o orçamento necessário para a efetivação das politicas públicas. Isso exigirá, na avaliação dela, que a mobilização social seja mantida mesmo depois da aprovação da nova lei.

“Queremos construir um estatuto em que todas as identidades regionais apareçam. É preciso reparar o dano histórico contra nosso povo e suas gerações futuras. Tão importante quanto frear as desigualdades e reparar os danos é criar oportunidades. É o caso dessa população negra imensa que vive encarcerada, das mulheres negras que são as maiores vítimas de violência doméstica e da juventude negra que precisa enxergar um futuro melhor.”
Andréia de Jesus

Andréia de Jesus

Dep. Andréia de Jesus

Entre as lideranças regionais que participaram do encontro em Juiz de Fora está a vereadora pela cidade, Laiz Perrut Marendino, uma das autoras do projeto aprovado no final do ano que deu origem à Lei Municipal 14.802, de 2024, que traz o Estatuto Municipal da Promoção da Igualdade Étnico-Racial, bastante elogiado ao longo das discussões.

“Foi mais de um ano de muita discussão, enfrentando várias resistências. O desafio agora é tirar a lei do papel, garantindo a regulamentação”, aponta.

Nessa linha, o presidente do Conselho de Igualdade Racial de Juiz de Fora, Paulo Azarias, reforçou a importância de garantir a efetividade do estatuto municipal, pois, segundo ele, é preciso combater o chamado racismo institucional todos os dias.

O militante lembrou como exemplo disso o caso da expulsão de dois alunos negros do campus local do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG), em agosto do ano passado, após uma briga envolvendo outro aluno branco. “Um dos alunos negros estava, inclusive, defendendo o colega branco, mas imaginem quem foram os dois expulsos? Ao aluno branco foram dados apenas cinco dias de suspensão”, denunciou.

“O movimento negro deve se unir em torno de um só propósito, que é reforçar essa consciência histórica em busca de políticas afirmativas que façam a reparação que o povo preto precisa e exige. Afinal, ainda hoje nossos corpos sentem as mazelas dos séculos de escravidão”, destacou a presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil e Combate ao Trabalho Escravo Moderno da OAB em Juiz de Fora, Carina Dantas.

 
 

Por fim, o coordenador de Políticas para a Igualdade Racial da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de Juiz de Fora, Jair Eduardo de Lima, lembrou o papel dos povos negro e indígena como formadores da identidade do Estado de Minas Gerais, daí a legitimidade da luta por uma reparação histórica.

“A democracia nos dá esse direito de construir políticas para reverter as condições precárias da sociedade negra ainda hoje no nosso Estado. Mas a cada dia de luta o racismo reage e avança, por isso é fundamental que conheçamos bem os nossos direitos”, apontou, ao destacar a importância da Lei Federal 14.532, de 2023, que equipara a injúria racial ao crime de racismo.

Maior cidade da Zona da Mata e Campo das Vertentes, Juiz de Fora tem, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), três vezes mais pessoas brancas do que pretas. No município, 52,9% da população se descreve como branca e 17% se autodenomina preta, contando ainda com 29,84% de pardos, num universo de 540.756 habitantes.

Seminário Legislativo Estatuto da Igualdade Racial de Minas Gerais -Encontro Regional Juiz de Fora

Seminário Legislativo Estatuto da Igualdade Racial de Minas Gerais -Encontro Regional Juiz de Fora

Abolição da escravatura ainda inconclusa

A diretora-geral da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa), que funciona como a secretaria municipal da área, Giane Elisa Sales de Almeida, reforçou, em sua apresentação para subsidiar a elaboração de propostas pelos participantes do encontro regional, a urgência de vencer a etapa da reparação para conseguirmos falar em equiparação.

Mas, segundo ela, independentemente do teor das propostas apresentadas no seminário legislativo, é importante não dissociá-las da alocação de recursos para implementá-las.

“Não há a menor possibilidade de pensar uma política pública sem orçamento para executá-la. Para isso, precisamos de representantes em todas as instâncias do Poder Legislativo comprometidos em garantir os recursos para essas políticas de reparação e equiparação racial”, analisou.

Giane Almeida lembrou que a criação de um marco legal afirmativo, como o futuro estatuto estadual, é fundamental para um País em que, na prática, ainda vive o cenário de uma abolição da escravatura inconclusa.

“Podemos até chamar essa abolição de golpe pela forma como ela ainda é tratada pela historiografia oficial. Esse processo foi feito sem as mínimas condições de dar dignidade para os negros, que foram sequestrados de sua terra e, após libertos, ficaram sem direito à terra, escola e saúde. Por isso é preciso ainda falar em reparação e equiparação."
Giane Almeida
Diretora da Funalfa

Ela lembra ainda o cenário desafiador de lutar por direitos históricos num País em que a própria democracia ainda é ameaçada. “Nosso País nunca foi verdadeiramente democrático com a população negra e com a população indígena. Quando o debate é sobre a falta de direitos, ela está sempre na frente, infelizmente. Não existe igualdade racial no Brasil”, sentenciou.

A especialista também destacou a importância de diferenciar o racismo institucional do racismo estrutural. No primeiro caso, segundo ela, é fundamental entender como ele funciona devido à falta de democracia que ele provoca. No segundo, da mesma forma, para que ele não desobrigue as pessoas a serem ativas no combate.

“Afinal, se o racismo é estrutural alguém pode achar que não tem nada com isso, mas as pessoas brancas precisam ser implicadas, sobretudo as detentoras de poder. O desafio é garantir aos negros condições dignas de saúde, educação e segurança pública pois esses são os três pilares que determinam a possibilidade de vier e de morrer”, avaliou a diretora da Funalfa.

Giane Almeida por fim elogiou a coragem das parlamentares mulheres, sobretudo as negras, por resistir bravamente aos constantes ataques da violência política.

Fonte: ALMG

 

 

 

 


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