O Cantinho Musical , neste artigo , retornará no tempo para apresentar algumas pérolas musicais , quando os sentimentos do homem buscavam nas grandes serestas uma razão de prazer através das belas canções da época . No meio artístico, constituído de grandes cantores e compositores , destacava-se, com sua voz suave nas interpretações de lindas músicas , um CABOCLINHOQUERIDO que, de tantas vezes ter anunciado seu retiro artístico do meio musical , recebeu a alcunha de “ CANTOR DAS DESPEDIDAS “ rótulo que identifica esse grande intérprete e compositor : “ SILVIO CALDAS “ .
SILVIO CALDAS era carioca do bairro de São Cristóvão, teve contato com a música desde a infância, pois o pai era dono de uma loja de instrumentos musicais e atuava amadoramente como compositor de valsas, foxes, sambas . A primeira gravação foi em 1930, e desde o início notabilizou-se interpretando sambas. Silvio Caldas se transformaria, ao lado de Orlando Silva , Francisco Alves e Carlos Galhardo , em um dos cantores de maior sucesso da chamada época de ouro da MPB. A partir de 1934, por meio de várias parcerias de grandes sucessos com Orestes Barbosa , demonstra seu talento para a seresta, gênero que o promoveria por todo o Brasil.
O Cantinho Musical a partir de agora desfilará belas canções executadas por este dono de uma interpretação preciosa e de grande voz, que usava para esmerilhar a beleza de cada palavra da melodia . Com poeta Orestes Barbosa musicou inúmeros poemas, sendo o mais famoso deles: “Chão de Estrelas “ que o poeta Manuel Bandeira definiu com precisão toda a força daquela poesia , declarando : “ Se se fizesse aqui um concurso para apurar qual o verso mais bonito de nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes: “tu pisavas nos astros distraída…”. Versos imortalizados na voz sofisticada e galanteadora de Silvio Caldas, sempre ouvida, mesmo que dentro d’almas, nas melhores serestas do país. Passemos apresentar essa bela canção : “ CHÃO DE ESTRELAS “ . [ “ / Minha vida era um palco iluminado / Eu vivia vestido de dourado / Palhaço das perdidas ilusões / Cheio dos guizos falsos da alegria / Andei cantando a minha fantasia / Entre as palmas febris dos corações / Meu barracão no morro do Salgueiro / Tinha o cantar alegre de um viveiro / Foste a sonoridade que acabou / E hoje, quando do sol, a claridade / Forra o meu barracão, sinto saudade / Da mulher pomba-rola que voou / Nossas roupas comuns dependuradas / Na corda, qual bandeiras agitadas / Pareciam estranho festival! / Festa dos nossos trapos coloridos / A mostrar que nos morros mal vestidos / É sempre feriado nacional / A porta do barraco era sem trinco / Mas a lua, furando o nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão / Tu pisavas os astros, distraída / Sem saber que a ventura desta vida / É a cabrocha, o luar e o violão / . ] .
Esta bela canção dos compositores Jorge Faraj e Newton Teixeira expressa em seus versos um lirismo incomparável , quando o poeta, em maravilhosas linhas poéticas , endeusa a mulher, comparando-a com toda beleza natural , entretanto vendo sua musa como personagem de seu grande sofrimento, convicto do espaço social que separa os dois , rotulando-a como “ A DEUSA DA MINHA RUA “ . [ “ / A Deusa da minha rua / Tem os olhos onde a lua / Costuma se embriagar / Nos seus olhos eu suponho, / Que o sol num dourado sonho, / Vem claridade buscar, / Minha rua é sem graça / Mas quando por ela passa / Teu vulto que me seduz / A ruazinha modesta, / É uma paisagem de festa / É uma cascata de luz, / Na rua uma poça d'água, / Espelho da minha mágoa / Transporta o céu para o chão, / Tal qual o chão da minha vida / A minh'alma comovida / O meu pobre coração / Espelhos da minha mágoa, / Meus olhos são poças d'água / Sonhando com teu olhar... / Ela é tão rica, e eu tão pobre, / Eu sou plebeu, e ela é nobre / Não vale a pena sonhar / . “ ] .
Pode-se considerar esta canção, composta maravilhosamente por CÂNDIDO DAS NEVES, como o verdadeiro hino das grandes serestas , porque todos os cantos são introduzidos nas reuniões de seresteiros por ela . Caboclo , alcunha do autor , constrói seu poema expondo, em cada verso, um panorama poético para sua amada que embeleza o cenário , utilizando metaforicamente a natureza como realce na grandeza de uma “ NOITE CHEIA DE ESTRELAS “ . [ “ / Noite alta, céu risonho / A quietude é quase um sonho / O luar cai sobre a mata / Qual uma chuva de prata / De raríssimo esplendor / Só tu dormes não escutas / O teu cantor / Revelando à lua airosa / A história dolorosa / Deste amor. / Lua, manda tua luz prateada / Despertar a minha amada / Quero matar meus desejos / Sufocá-la com meus beijos / Canto / E a mulher que eu amo tanto / Não me escuta está dormindo / Canto e por fim / Nem a lua tem pena de mim / Pois ao ver que quem te chama sou eu / Entre a neblina se escondeu. / Lá no alto a lua esquiva / Está no céu tão pensativa / E as estrelas tão serenas / Qual dilúvio de falenas / Andam tontas ao luar / Todo o astral ficou silente / Para escutar / O teu nome entre as endeixas / Nas dolorosas queixas / Ao luar / . “ ] .
Interpretada pela voz suave e melodiosa de Silvio Caldas , Ary Barroso compôs esta bela canção que retrata toda uma paixão pela mulher amada , configurado em um projeto amoroso de união para um eterno relacionamento de felicidade com “ MARIA “ . [ “ / Maria / O teu nome principia / Na palma da minha mão / E cabe bem direitinho / Dentro do meu coração / Maria / Maria, de olhos claros cor do dia / Como os de Nosso Senhor / Eu por vê-los tão de perto / Fiquei ceguinho de amor / Maria / No dia minha querida / Em que juntinhos na vida / Nós dois nos quisermos bem / À noite em nosso cantinho / Hei de chamar-te baixinho / Não há de ouvir mais ninguém / Maria / Maria, era um nome que eu dizia / Quando aprendi a falar / Da vozinha coitadinha / Que eu não canso de chorar / Maria / E quando eu morar contigo / Tu hás de ver que perigo / Que isso vai ser / Ai, meu Deus / Vai nascer todos os dias / Uma porção de Marias / De olhinhos da cor dos teus / Maria / Maria !!! / . “ ] .
Silvio ainda contribuindo com melodia um belo poema de Orestes Barbosa que versa sobre o sofrimento de um amor não correspondido , entretanto , em profundo sonho , conservava, com grande ilusão, uma expectativa pelo aparecimento de sua paixão descendo em um elevador imagístico fruto da miragem de um “ ARRANHA CÉU “ . [ “ / Cansei de esperar por ela / Toda noite na janela / Vendo a cidade a luzir / Nestes delírios nervosos / Dos anúncios luminosos / Que são a vida a mentir / E cada vez que subia / O elevador não trazia / Essa mulher, maldição / E quando lento gemia / O elevador que descia / Subia o meu coração / Cansei de olhar as reclames / E disse ao peito não ames / Que o teu amor não te quer / Descansa, feche a vidraça / Esquece aquela desgraça / Esquece aquela mulher / Deitei-me então sobre o peito / Vieste em sonho ao meu leito / E eu acordei, que aflição / Pensando que te abraçava / Alucinado apertava / Eu mesmo meu coração / . “ ] .
Esta bela canção, composta por Custódio Mesquita e Sadi Cabral , em brilhante interpretação de Silvio Caldas , exalta maravilhosamente a imagem da mulher em detalhes metafóricos e elogios à sua escultura , utilizando uma verdadeira vassalagem amorosa diante da musa amada que representa a imagem de toda “ MULHER “ . [ “ / Não sei / Que intensa magia / Teu corpo irradia / Que me deixa louco assim / Mulher / Não sei / Teus olhos castanhos / Profundos, estranhos / Que mistério ocultarão / Mulher / Não sei dizer / Mulher / Só sei que sem alma / Roubaste-me a calma / E a teus pés eu fico a implorar / O teu amor tem um gosto amargo / E eu fico sempre a chorar nesta dor / Por teu amor / Por teu amor / Mulher / . “ ] .
Esta maravilhosa canção, composta por Ary Barroso e Lamartine Babo , sucesso na brilhante voz de Sílvio Caldas , demonstra um lugar melancólico motivado pela tristeza de um moreno , irradiando metaforicamente para a natureza um estado de melancolia na comparação de suas manifestações “ NO RANCHO FUNDO “ . [ “ / No rancho fundo, bem pra lá do fim do mundo / Onde a dor e a saudade contam coisas da cidade / No rancho fundo, de olhar triste e profundo / Um moreno conta as mágoas tendo os olhos rasos d'água / Pobre moreno, que de noite no sereno / Espera a lua no terreiro tendo o cigarro por companheiro / Sem um aceno ele pega da viola / E a lua por esmola vem pro quintal deste moreno / No rancho fundo, bem pra lá do fim do mundo / Nunca mais houve alegria nem de noite nem de dia / Os arvoredos já não contam mais segredos / E a última palmeira já morreu na cordilheira / Os passarinhos internaram-se nos ninhos / De tão triste esta tristeza enche de trevas a natureza / Tudo por quê? Só por causa do moreno / Que era grande, hoje é pequeno para uma casa de sapê / . “ ] .
Ainda musicando um poema de Orestes Barbosa , Silvio Caldas interpreta , maravilhosamente , esta canção que externa um enorme sentimento de amor por alguém , acentuando mais o sofrimento do amado pela perda de uma paixão irrecuperável que , tentando omitir seu nome, “ QUASE QUE EU DISSE “ . [ “ / Na febre dos meus desejos / Fui à procura de beijos / Em bocas tão desiguais / E agora de beijos farto / Tristonho volto pro quarto / Quero chorar, nada mais / Sabiam quanto eu te amava / Sabiam porque eu falava / a todos do meu amor / E logo a vespa da intriga / Originou esta briga / Oh! minha amiga, que horror! / Um coração sem carinho / É o galho que perde o ninho / Na fúria do vendaval / E é triste um ninho rolando / E um passarinho cantando / Em busca de um canto igual / Oh! quanta desgraça junta / Toda cidade pergunta / E vai dizendo o que quer / Da mágoa que me devora / E quase que eu disse agora / O nome desta mulher. / . “ ]
Esta linda canção, clássico de Lamartine Babo , tem uma hilária história na sua criação. Existem variações de versões para a gênese da música, entretanto, todas remetem a uma série de correspondências trocadas pelo compositor e um dentista-músico conhecido por Carlos Alves Netto que resolveu utilizar o nome de uma mulher para conseguir fotografias autografadas. Contam , ainda , que o autor da música foi à cidade de Minas Gerais para conhecer a autora da missiva e , quando lá chegando , viu que se tratava de uma estratégia do dentista , entretanto Lalá apaixonou-se pelo povo e pela “ SERRA DA BOA ESPERANÇA “ . [ “ / Serra da Boa Esperança, esperança que encerra / No coração do Brasil um punhado de terra / No coração de quem vai, no coração de quem vem / Serra da Boa Esperança meu último bem / Parto levando saudades, saudades deixando / Murchas caídas na serra lá perto de Deus / Oh, minha serra, eis a hora do adeus vou me embora / Deixo a luz do olhar no teu luar / Adeus / Levo na minha cantiga a imagem da serra / Sei que Jesus não castiga um poeta que erra / Nós, os poetas, erramos, porque rimamos também / Os nossos olhos nos olhos de alguém que não vem / Serra da Boa Esperança, não tenhas receio / Hei de guardar tua imagem com a graça de Deus / Oh, minha serra, eis a hora do adeus, vou-me embora / Deixo a luz do olhar no teu luar / Adeus / . “ ] .
Esta maravilhosa canção , compostas com lindas expressões metafóricas , versa sobre assumir, com muita poesia, a idade avançada , entretanto valoriza sobretudo a bela lembrança de uma juventude plena de felicidade e muita paixão , sendo , simbolicamente manifestada, através de versos cheios de lirismos por “ MEUS CABELOS COR DE PRATA “ . [ “ / Meus cabelos cor-de-prata / são beijos de serenata / que a lua mandou pra mim. / Os meus cabelos grisalhos / são pingos brancos de orvalho / num tinteiro de nanquim. / Estes meus cabelos brancos / que hoje são da cor dos bancos / solitários de um jardim, / já sentiram muitos dedos / e ouviram muitos segredo / que elas contavam pra mim. / Se hoje, estão desbotados / é porque foram beijados / com muito amor e emoção / E os beijos foram tão puros / que os meus cabelos escuros / estão da cor do algodão. / Eu fiz tanta serenata / que a lua, desfeita em prata, / mandou mil beijos pra mim. / E os beijos foram tão puros / que os meus cabelos escuros / ficaram brancos... assim ! / . “ ] .
Esta composição que conta a história da migrante paraibana Maria do Ingá (cidade paraibana), que foge da seca . A fusão dos nomes, Maringá, batiza a canção, que fica famosa. Ela alcança tamanho sucesso que por vias oblíquas acaba influenciando na decisão do nome de uma cidade recém-inaugurada no norte do Paraná. “ MARINGÁ “ . [ “ /Foi numa leva / Que a cabocla Maringá / Ficou sendo a retirante / Que mais dava o que falar / E junto dela / Veio alguém que suplicou / Pra que nunca se esquecesse / De um caboclo que ficou / Maringá, Maringá / Depois que tu partiste / Tudo aqui ficou tão triste / Que eu garrei a imaginar / Maringá, Maringá / Para haver felicidade / É preciso que a saudade / Vá bater noutro lugar / Maringá, Maringá / Volta aqui pro meu sertão / Pra de novo o coração / De um caboclo assossegar / Antigamente uma alegria sem igual / Dominava aquela gente da cidade de Pombal / Mas veio a seca, toda chuva foi-se embora / Só restando então as água / Dos meus olhos quando chora / Maringá...Maringá / Maringá...Maringá / Maringá, Maringá / Volta aqui pro meu sertão / Pra de novo o coração / De um caboclo assossegar / . “ ] .
Nesta canção notamos uma enorme amargura motivada pela fugacidade do tempo e uma acentuada saudade de uma bela juventude em que tinha “ MEUS VINTE ANOS “ . [ “ / Nos olhos das mulheres / No espelho do meu quarto / É que eu vejo a minha idade / O retrato na sala / Faz lembrar com saudade / A minha mocidade / A vida para mim tem sido tão ruim / Só desenganos / Ai, eu daria tudo / Para poder voltar / Aos meus vinte anos. / Deixaste minha vida / A sombra colorida / De uma saudade imensa / Deixando-me ficaste / Mostrando-me o contraste / Matando a minha crença / E hoje desiludido / Muito tenho sofrido / Cheio de desenganos / Ai, eu daria tudo / Para poder voltar / Aos meus vinte anos / . “ ] .
Benedito Lacerda e JorgeFaraj compuseram esta eterna canção que se perpetuou na interpretação de Silvio Caldas homenageando a mais divina das profissões em um encantamento de alguém apaixonado com a tarefa de ensinar e externando uma declaração bem amorosa à “ PROFESSORA “ . [ “ / Eu a vejo todo dia / Quando o sol mal principia / A cidade a iluminar / Eu venho da boemia / E ela vai, quanta ironia / Para a escola trabalhar / Louco de amor no seu rastro / Vagalume atrás de um astro / Atrás dela eu tomo o trem / E no trem das professoras / Em que outras vão, sedutoras / Eu não vejo mais ninguém / Essa operária divina / Que lá no subúrbio ensina / As criancinhas a ler / Naturalmente condena / Na sua vida serena / O meu modo de viver / Condena por que não sabe / Que toda culpa lhe cabe / De eu viver ao Deus dará / Menino querendo ser / Para com ela aprender /Novamente o be-a-bá / ] .
Encerrando esta singela homenagem a uma das vozes mais admirada pelos frequentadores de seresta , o Cantinho Musical escolheu, em uma galeria enorme de geniais canções, um sucesso composto por Herivelto Martins e Marino Pinto que versa sobre a lembrança de um amor inesquecível , simbolizado e memorizado em “ CABELOS BRANCOS “ . [ “ / Não falem desta mulher perto de mim / Não falem pra não lembrar minha dor / Já fui moço, já gozei a mocidade / Se me lembro dela me dá saudade / Por ela vivo aos trancos e barrancos / Respeitem ao menos os meus cabelos brancos / Ninguém viveu a vida que eu vivi / Ninguém sofreu na vida o que eu sofri / As lágrimas sentidas / Os meus sorrisos francos / Refletem-se hoje em dia / Nos meus cabelos brancos / E agora em homenagem ao meu fim / Não falem desta mulher perto de mim / . ] .
“ NÃO HÁ COMO SEPARAR UMA VOZ IDENTIFICADA COM AS REUNIÕES DE SERESTEIROS , PORQUE A ALMA QUE TRADUZ TODO SENTIMENTO MUSICAL ESTÁ CONTIDA NO ECO MARAVILHOSO DA SAUDADE . SILVIO CALDAS FAZ PARTE DESSA IDENTIDADE SONORA QUE DIRECIONA PARA O CORAÇÃO DOS AMANTES DA MÚSICA UMA MENSAGEM REPLETA DE AMOR E LEMBRANÇAS ! “