10/07/2020 às 14h40min - Atualizada em 10/07/2020 às 14h40min

CALOUROS EM MIRAÍ-MG

Edição 189 do Jornal Leopoldinense
Ao receber um email sobre circo eu me lembrei de um fato ocorrido na infância. E lembrando, agora estou sorrindo “amarelo”, sorrindo de vergonha do que se praticou com a minha conivência. 
 
Desde garotinho sempre gostei de dançar, mas sempre fui uma negação como cantor. Minhas irmãs afirmam que ninguém canta na família porque em nossa casa não havia sequer rádio.
 
De uma feita, um circo de diversões chegou à querida Miraí. Na matinê de domingo houve, depois de ampla divulgação que durou toda a semana anterior, um concurso de calouros, com prêmio em dinheiro a ser dado ao candidato que recebesse mais aplausos.
 
Nos primórdios dos anos cinquenta não havia TV, muito menos internet e, quando surgia uma programação todos compareciam a ela.  E para aquela vesperal praticamente toda Miraí se encontrava no circo, até mesmo em consequência do anunciado Concurso de Jovens Calouros de Miraí. 
 
À época existia um cantor de musica country chamado Bob Nelson e minha turminha tomou a ditatorial decisão de que, como eu era “xará” dele, eu iria cantar uma música dele, sucesso à época. Meus argumentos de que eu nada cantava foram zero diante da insistência geral. Fui para o sacrifício, leia-se vexaminoso sacrifício, e combinado ficou que, se eu ganhasse, nós iríamos ao bar dos senhores Ceci e Marcelino Campos, pertinho do local, e compraríamos todo o prêmio em picolés. 
 
A letra da música escolhida versejava
“Na minha fazenda tem um boi
Este boi se chama Barnabé   
Todo dia ele fica se babando
Pela minha linda vaca Salomé.
 
Ô Tiroleí, ô tiroleí ...”
 
Filho de dona Esterina e do Sr. Navantino Barbosa, amigos íntimos de meus pais, Weyler era um garoto visivelmente bem doentinho, talvez portador de ascite, a popular barriga d´água.
 
A cidade toda se encontrava agitada com o anunciado concurso e, quando se soube da inscrição do Weyler, automaticamente se acreditou que ele ganharia, pois a alta qualidade de sua voz era enaltecida por todos.
 
Vários garotos cantaram. Chegada minha vez, quase empurrado, subi titubeante os poucos degraus da escada. Era como se uma forca me aguardasse. Já sinceramente arrependido, tinha a garganta seca de tanto temor. Cantei, ou melhor, tentei cantar e, como era de se esperar, me saí tremendamente mal.
 
Para surpresa dos neutros e das torcidas que se dividiram entre familiares/candidatos, logo de saída foram eliminados os demais concorrentes e eu fiquei como finalista unicamente porque minha turma, de olho no regulamento, aplaudiu com entusiasmo minha vergonhosa apresentação.
 
No tradicional “é ele?” “é ele?” “é ele?”, a horda se esgoelava para dizer nãããããããããããããão quando o animador do auditório apontava para o assustado Weyler e ridiculamente berrava SIM quando o dedo do animador se virava em minha direção.
 
A pergunta se repetiu por mais de uma vez e as vozes a meu favor me colocavam cada vez mais constrangido, principalmente quando meus olhos cruzavam com os severos olhares de mamãe, decididamente contrária àquela farsa. 
 
Cansado de tentar reverter a situação, o indignado animador acabou por me declarar vitorioso.
 
O meu “fã clube” era uma turma grande e o prêmio deve ter sido de alto valor, pois foi suficiente para permitir que cada um dos componentes da indecorosa claque chupasse logo em seguida 3 ou 4 ou talvez até mais picolés. Conforme prévio entendimento, nenhum centavo foi poupado.
 
Depois desta tarde “desonesta”, Weyler, que tinha como seu caminho natural a frente de minha casa, sempre comentava comigo em tom choroso "não entendo por que você ganhou, se você nada canta e eu sou sempre elogiado por todos". Por sentimentalismo, nunca deixei de ficar constrangido quando ele se queixava da injusta derrota.
 
Quando meu inofensivo vizinho Weyler precocemente faleceu não muito tempo depois, eu, pré-adolescente, quase entrei em crise depressiva de tanto arrependimento. Todos meus coleguinhas eram de famílias boas, crianças de bons sentimentos, bons alunos e com absoluta certeza ninguém teve a mínima intenção de menosprezar uma criança doente, mas unicamente fazer uma brincadeira para ganhar picolés.
 
Ainda hoje eu me censuro quando me recordo do fato; os demais participantes do episódio só se recordarão se eu lhes cutucar a memória e talvez nem se censurem por isso.
 
 Eu me penitencio porque sei que cometi o grave deslize de ter “aceitado” cantar para obter a desonesta vitória, mas a cambada que teve a original ideia e me aplaudiu com entusiasmo quase histérico também teve alta parcela de culpa.
Quem não fez pelo menos uma travessura, “passou pela vida e não viveu”; quem não fez pelo menos uma travessura que “atire a primeira pedra”.
 
"Causo" de infância. 
 
Em 26.09.2011
Nelsinho.
 
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